Passos Curtos.

Estava lendo, imaginando dormir, mas as ideias pareciam espernear na cabeça com chutes e socos, querendo ir ao papel. A noite severa me atormentaria com choros de crianças, miados, latidos e ventanias, e como os pensamentos fantásticos que vem e vão, este ficou. Tenho andado sofisticadamente, do computador às refeições, necessidades, higiene e cama. Uma rotina de férias, sem rotina. É onde faço os planos do ano inteiro, as ideias mais malucas, entrevistas, pesquisas, trabalhos históricos, sonhos de criança que não se apagam. Esse ano eu dirigirei um carro, finalmente. Parece pouco, pela juventude avantajada que já aguarda ansiosa a abertura dos semáforos, colide nos engarrafamentos, usufrui da velocidade. Eu não tenho corrido, na verdade tenho ido a passos curtos e densos, mesmo quando perseguido. Eu tenho medo. De ser obsoleto, de não aproveitar a vida, medo de me enganar e ver que a vida não merece os sonhos que tem. Tenho medo das crianças estragarem o futuro, de comprar um objeto que me mate, tenho receio de ver tudo errado, dos olhos que tenho verem uma ilusão de mundo e eu me acabar acertado pela lei do cão. E que além do medo, eu vivo. Vivo o amor da minha família que me ama o simples amor maquiado pela convivência nua e crua. Vivo o amor da minha namorada que me incendeia o pensamento e me carrega os atos a todo instante. Vivo o amor dos amigos que sentem falta das gargalhadas e palavras sérias que pronuncio. Vivo o amor que há pelo próximo, em toda sua escala, do ser que deixo passar sem dar atenção até o mais terno dos conhecidos que se enche de graça com minha presença ou lembrança. Tenho cultivado o amor próprio, acima de tudo. Amor pelo que vejo, pelo que sinto, pelo que respiro, pelo que consumo com meu jeito de ser. Um intenso jogo de trocas, entre interno e externo, visões e conclusões, onde o território eu tem limitações frágeis e possibilidades mil. Vou presenciando tudo pelo telefone e pela internet, às vezes pela varanda ou na porta de casa, gastando com usura os momentos de corpo a corpo, carregando com juros as expectativas do reencontro, refazendo-me a cada segundo. A mudança de ano é lenta, um restabelecimento demorado, aonde perspectivas psicológicas vão pautando minha mente. Não se deve admirar a me ver alumbrado com qualquer miudeza ou banalidade. Sou de alma pobre, me contento com pouco e aos poucos vou ao contentamento rotineiro dum homem sem rotina.

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