O consumo

Três dias de purgatório.

Eu e minhas convulsões. Os pelos do corpo arrepiam-se, minha face se estremece, meus dedos e pernas não param de se tremer, entre suspiros e espasmos: O berro de alegria soa dentro da sala fechada, Ahhhhhh! Aos pulos eu comemoro os minutos que passam aos meus olhos. Jogo os papéis da mesa para o alto, ponho um drinque intenso para amargar minha garrafa de felicidade instantânea. Acho que encontrei a orquídea escarlate. Tem nome doce, minhas horas viram de velocidade, ora demoradas se estamos distantes, ora breves se estamos juntos. O delicioso veneno que molha sua boca me punge, fico arrebatado em sua frente. Chama-se Rayca Ambrósio, magra e bela, nascida em Jaboatão. Para ela, sou romântico, confuso, tenho flores furtadas, dinheiro pra ônibus lotado e cinema de promoção, poemas de Castro Alves para declamar em voz alta, uma garrafa de vinho branco ou um Martini com gelo. Além dos sorrisos límpidos, tenho cartas na manga e cartolas encantadas pra mágica, uma janela com cortina lilás para mostrar a lua, que fica linda às seis. Como um adolescente que se apega depressa, eu adquiria ventura pra mim, paixão para ela, peripécia para ensaiar, todas embrulhadas para presente. A brisa alisava as ervas daninhas do pé do prédio, meus cabelos cacheados e esbranquiçados, nos outros apartamentos, as luzes festejavam a minha ebriedade. Louis Armstrong era hino, acompanhado de alguns clássicos de Clapton, Ray Vaughan e os Stones. Quando a esquizofrenia batia a porta querendo festa, ouviam-se frevos, maracatus, um pouco de pop e meus gritos e cantaroladas. Como posições de sexo tântrico, cheias de orgasmos múltiplos e gritinhos embriagados. Os telegramas chegavam diariamente, de Rayca, de alguns admiradores secretos com boas reminiscências e as velhas dívidas também. Eu acordava cedo, arrumava sem pressa a bagunça do dia anterior, lia as notícias, sentado ao vaso e depois aquecia um café, enquanto fumava. Passei a comprar cigarros de marca maior e usava um chapéu Nestor. O meu azulejo português reluzia mais, os quadros tortos na parede embaraçavam-me, com suas nuances eróticas. Deitava pela grama dos jardins, dispersando euforia. Parecia a criança boquiaberta em seu videogame depois de horas a fio, quando a mãe reclama dos seus exageros abestalhados. Menino que nunca soube soltar pião ou disputar bolas de gude, sempre sem camisa e com um sorriso no rosto. As fábulas noturnas, com seus bêbados, transexuais indecisos, as putas que se divertem e fumam tanto quanto eu. Eu caminhava pelas ruas sem polimento algum, esbarrando nas pessoas, folheando livros, escrevendo mensagens, olhando as nuvens, percebendo a expressão dos casais, seus olhares e sorrisos diabeticamente afetuosos.  E no fim da noite, eu aguardava a Rayca retornar. Assistia a filmes imbecis, comia pipoca de micro-ondas, alinhava as unhas com um cortador e serra de unha, o ventilador falhando, os livros orelhudos sobre a mesa, junto com a carteira de cigarros e o celular defeituoso. Às vezes, uma angústia incrustava meu peito, pela demora. Palitava os dentes, arrotava depois de um refrigerante, comia leite condensado excessivamente, olhava a tevê de 14 polegadas, corria pro violão. Ao fim da canção “Pra você dar o nome”, dos 5 a seco, a maçaneta girava, a porta rompia-se lentamente, com a franja molhada do chuvisco, num vestido bege, a bolsa e o jaleco à mão, a mão subia ao rosto, encostava na boca e soprava um beijo: Rayca. E estava pronta para consumo, seu perfume gostoso, seu rosto cheio de belezas inconfundíveis, suas curvas de tesão, euforia e adolescência, seus olhos negros penetrando libidinosamente os meus pseudo-claros, procurando o que eu teimava em esconder: o denso amor da vida inteira.

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