O pai da contrariedade.


E se um dia eu voltasse para casa. Para onde eu fui não importa, pois fui com meus próprios pés. Eu chegaria com meus brincos indianos e minhas tatuagens jamaicanas. Meus olhos estariam enegrecidos pela cafeína e pelas noites que se passaram em claro. Tenho gasto meu dinheiro com uns folhetins e cigarros vencidos. Meus vizinhos gays têm deixado bilhetinhos e presentes na minha janela; eu os tenho recolhido e sorrido bastante, deixando um ‘obrigado’ bem poético por escrito. Aos domingos tenho dormido até as nove. Da minha boca tem saído palavras naturais, tudo que preciso dizer. Aos safanões na rua, eu tenho dito: “Mil perdões, senhor”. Tem dado certo. 

O apartamento que estou morando é bem arrumado, cheiroso, os biscoitos são modestos, mas muito deliciosos. As noites em que tenho chegado bêbedo em casa são muito bem dormidas e minha mulher adora ler meus poemas prematuros. Meus filhos se divertem com meus brincos alargadores, acham o máximo minhas tatuagens de desenho animado e são muito cordiais com um vizinho reacionário que temos, e que a propósito os adora, sem saber que são mini-ateus, com tendências modernistas. 

Meus domingos têm tido uma tonalidade alegre. É bem assim, cama, futebol, cerveja, almoço com filme na sala, brigadeiro suculento que eu mesmo faço. No fim da tarde, na sala, uma conversa descontraída sobre a semana. Muita vez, minha mulher reclama dos meus textos vagos ou incompreensíveis e meus filhos ficam contemplando a minha calvície ansiada, com tapas e beijos. Eles são Gregory e Laura, meus tesouros.

Tenho dado sorrisos largos ao amanhecer, com um hálito pavoroso; passado o dia inteiro sem um mísero e refrescante banho; feito coisas diferentes, tenho mudado. Passei o último Natal regado por bons vinhos em Lisboa e o ano-novo foi rompido com muita Tequila na Cidade do México, tudo em família (mulher e filhos). 

No trabalho, as pessoas têm rido gostosamente do meu estilo solto. Afinal, encontrei um chefe que elogiasse a minha bagunça e ainda me pagasse pela moagem dos meus poemas e crônicas, transformando-os numa coisa que não tem nome concreto. 

No meu pulso, um relógio muito bonito, de pulseira de metal. Tenho vestido blazers quadriculados, tênis all stars à beça, comido cachorro-quente e discutido o desvario de Nietzsche e a indecisão de Heidegger com o mendigo galego da porta da redação. 

Tenho acompanhado os jogos do Náutico às quartas, trabalhado duro nos pescoções da sexta e plantões no fim de semana, tenho subido montanhas, assistido com lágrimas a filmes românticos e ido a shows de thrash metal underground. Vez ou outra, um concertozinho da MPB tem me feito delirar, os carnavais têm tido mais graça, nunca aprendi o que é cheque especial e meu carro não tem teto solar. 

Tenho saído com meus irmãos e amigos sempre que posso; pegado um solzinho às segundas e nas férias, tenho ido a uma casa de campo muito aconchegante que consegui comprar. Meu gato tem sumido por dias e meu cachorro caga o condomínio inteiro. 

Tenho ficado cada vez mais surdo graças aos meus fones de ouvido tecnológicos e tenho orado em silêncio nas vezes que passo pelas igrejas caladas. O meu risoto não é o melhor da casa. Minha filha, que tem só oito anos, faz melhor que eu. Minha mulher vive cantando no banheiro e reclamando do meu som pesado. Ela tem deixado jantares primorosos, pra quando eu chegar do trabalho. 

Meu colchão é ortopédico, meus dentes estão tortos e meu violão ainda é o primeiro, mesmo depois de tantas guitarras lindas e potentes.

Eu ainda deito na rede e balanço de leve, como fazia na casa dos meus pais, em noites quentes de inverno. Eu rio bastante, quando dona Eloá (a nossa diarista) começa a falar das cenas de sexo da novela e o jeito como ela descreve os galãs. Dona Eloá resmunga o dia todo das minhas meias penduradas no espelho da cama e das roupas sobre a cadeira do notebook. 

Ao chegar do jornal, minha mulher está na cama, de meias cor-de-rosa, me esperando com os olhos penteados. Dá um sorriso lindo, um beijo molhado e se deita, me abraçando com carinhos ousados e eu gosto. 

Eu tenho ficado na varanda, de pernas cruzadas no chão, meus pensamentos têm voado longe. E acabaram me trazendo, nesse dia, para cá. Voltei para ver meus pais. Eles estavam deitados na cama, abraçados. Eu, de início, enchi meus olhos chorosos de lágrimas que estavam guardadas há tempos. Dei um abraço neles, eles não disseram mais do que o de sempre: Que saudade, meu filho. Mamãe, sempre recordando meus velhos hábitos e meu esquecimento herdado dela. Papai, velhinho e supimpa, falando de seus antepassados e sucessos do Gonzaga, que me lembro bem, ouvia em seu Passat 87, dentro da garagem. 

A casa de paredes sem quadros, apenas com os títulos do meu pai, um quadro do meu avô e os souvenires da minha mãe, de escada mal projetada, dando porrada na cabeça, e cadeira do papai na sala cheia de móveis mal arrumados não tinha mal nenhum. 

Na alma daquela casa, das pessoas que estavam dentro dela desde minha nascença, estava uma parte de mim. E mesmo com toda chaga passada e advinda, eu sou feliz. Talvez não com os sorrisos de ontem ou de 2001, mas presente e inconstante. 

De uma felicidade que, mesmo sem rumo, consegui acertá-la. Dar sentido à vida tem sido uma arte sem a qual não há sentido para nada. Não me importa aonde eu vá desde que seja com meus próprios pés, ainda que retorne a casa, só para comer bolo sábado à tarde.

Comentários

  1. Genial. Quando tu aprender a dosar a distância, tá feito.

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  2. Algumas homens conseguiram atingir o êxtase da perfeição. Talvez para os mais críticos você não tenha chegado lá, mas pra mim, pode ter certeza, é PERFEIÇÃO, e outro nome não se encaixa.

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