O suplício

               O homem se dispõe. Se curva para si. Esquece o orgulho e o que passou. Ao menos tenta. Há certo desperdício, mas segue-se. Queima todas as cartas onde escreveu promessas e declarou obrigações, além das recebeu onde lhe destratavam e enxovalhavam. Levá-lo-iam a envilecer. Ele apenas manteve-se. Despiu-se. Está nu à vista de ninguém e seus próprios olhos o castigam lentamente. As vezes que sucumbiu, as coisas que pelas quais se permitiu tentar, as pessoas que o persuadiram, todos caíram por terra e ele, no limbo do seu apartamento, arde. Tudo que jogou ao léu se empilhou e sumiu. Com as mãos abertas no ar, à altura do peito, pasma, vendo tudo desaparecer. Parece surpreso. Está no nada enfim. E rodopia com certo desespero. A cada giro, uma rajada de memórias o percorre. O latido dos cães entristecidos, as vozes que ignorou ouvir, as letras de livros estranhos de capas conhecidas, aromas românticos, peles que jamais se fez sentir, sensações em dobro, todas as coisas e pessoas que deixou passar: remorso.
            Sentindo o peso, o rosto contra o chão, quase esmagado, e não havia absolutamente nada a pressioná-lo, a não ser seu nobre pensamento. E a tudo isto pediu clemência, pois doía. Seus pés de ossos quebrados não lhe faziam erguer-se. Os olhos rubros e secos assim permaneciam forçosamente. A realidade fazia cair o manto e mostrava a carne. Uma poça de vinho tinto brota, de súbito. O homem se joga de corpo inteiro, mas só lhe cabe a cabeça. E mergulha-a com avidez, engole bastante vinho, uma safra podre. Seus olhos continuavam secos. Ele percebe a esfinge e chora como criança. Permite-se.
            O peito ainda queimava, tinha náuseas e azias. Tornou a si:
            — Não sei como, mas mudei da água para o vinho. Tenho fé, eu acho. Esse meu rosto ensopado de suor e vinho, não sei. Antes eu não via caminho, agora tenho alternativas. É claro! Os livros de sociologia ou os jornais recentes podem me ajudar. Talvez um exemplo de sucesso ou alguns dias de reflexão numa praça com velhos e crianças. Quiçá, eu olhando para as pessoas, mesmo as malditas, me fazendo de desconhecido, achando uma nova figura para mim, eu consiga caminhar. Meus pés doem muito. Pode ser que em algum templo desses pela cidade ou no corpo de uma ninfeta pobre, eu encontre a paz. Não me lembro de muito mais. Umas más-recordações, uns títulos clássicos na parede, alguns discos de rock n’roll, as drogas e o cheiro do feijão preto temperado com cebolas.
            — Gosto desse apartamento, com seus azulejos portugueses. O violão branco, o computador, a prateleira dos livros com miniaturas de carros dos anos 30, deve ser. O cheiro disso aqui parece ser meu. Devo estar indo bem e logo volto ao escritório. Se me culparam um dia, hoje estou bem e não vou a um psicólogo só por conta do meu aspecto fatigado. Sei do meu riso franco às piadas sem graça e trocadilhos, não jogo moedas aos mendigos por educação. Desisti de rever meus conceitos morais diariamente. Só quero aprender um pouco mais de astronomia e culinária. Um amor, eu já sei onde encontrar. Esse meu jeito tímido não me mata, me fortalece. O meu gosto por transição é que me move, seja a norte ou a sul, ou até aqui. Acho que está na hora de consumir a mim mesmo.  

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