Janelas pro achaque.

Herdeiros da Recifessência       

           
         Desistindo dos sonhos diabólicos e artimanhas com que conspirava o mais reles café entre amigos, o José Virgulino, agora, apenas debruçava-se na janela de seu pobre apartamento. Caminhava apático pelos cômodos, comia o pão duro do dia anterior, folheava os jornais. Gastava, ainda, uma hora tomando os remédios e se refazendo dos efeitos. Um desmaio seguido de engulhos e logo estava com os cotovelos sobre a janela, sentado em cadeira fixa.
           Era jovem excêntrico, cheio de olhos maliciosos, encarava moças enamoradas sem o menor pesar, a altivez fazia da sua juventude uma fonte inesgotável de prazer e argúcia, seus requintes. E nesses dias, andava aos tremeliques. Na fronte da sua janela um anúncio de marca de chocolates o enchia de compulsões e às vezes desfalecia ao exceder um punhado de açúcar mascavo. Mas era plena personalidade.
          O seu quarto, um santuário de quinquilharias e artigos provençais, um armário, a escrivaninha e a prateleira carregada, um tapete turco e vasto, um porta-disco e a radiola crua, com bandeja de cd e vidro do vinil trincado, um desmaio qualquer.
           A Boa Vista elevava seu fedor pelas aberturas e frestas. O barulho ensurdecedor dos carros e ambulantes emoldurava a parede encardida, mais umas janelas. A vizinha escarrava pela janela todo o tempo.
             Agora o José, mais um piegas esquecido nos cortiços centrais, vivia a contemplar o indescritível gado das pessoas que transitavam pelas ruas à vista, Rua Sete de Setembro, formigueiro de pechincheiros e arrojados em assunção, Conde da Boa Vista, escambo e vendagem, passeio irrequieto, rush.
            No edifício Marchinhas, os andares aliviavam-se da sordidez à medida que se subia. O prédio abrigava, no térreo, lojas de música, roupa e sex shop. Subindo as escadas, pessoas de procedência desconhecida, muita vez, homens irrigados de uísques falsos e pirataria maquinal. Escadaria sem janelas, um clima árido das paredes plúmbeas repletas de rabiscos gastos e cartazes de vidência com ampla concorrência. Lixeiras de furinhos abarrotadas de papel, piolas de cigarro, restos de acarajé e catarro ficavam nas quinas das escadas.
A senhoria Virgulino, terceiro andar, porta 206, com algumas pichações, grade branca e travas americanas defeituosas, maçaneta medieval oxidada. A mesa de granito alvo contradizia o ar clássico com que ornava cada palmo dos seus pertences. As cortinas de veludo tornavam a quitinete tépida, a cozinha apertada de panelas enegrecidas pelo mau cozimento e um balcão de lanchonete pregado à parede davam ao lar um estigma de praticidade. Nas paredes, xilogravuras e fotografias em sépia.
         Cosia as camisas de linho que ainda restavam do enlevo da casa Ele e Ela, próxima ao cine teatro São Luís. As coisas viviam incrustadas de reminiscências. José deteve-se em pigarrear o dia inteiro, rememorar suas paixões e ruínas, mas no fundo, gostava de si. Não desistia do velho cigarro que, volta e meia, o mandava a alguma emergência lotada. Quando não relutava, já era hora de deitar-se. Deixava a janela aberta, curtia o vento poeirento que vinha de fora. Era apetecer o que outro dia pudesse lhe oferecer. Janelas pro achaque capital.

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