Solidão no coletivo.
Ela roeu as unhas a viagem toda. Tão
linda moça, sobrancelhas finas, cabelos louros como o sol, os olhos castanhos
se inocentavam a cada piscar, eu me abestalhava, olhava a rua pela janela do
ônibus, lia duas palavras de Radiguet e depois me perdia de vista. Olhava a
frente, as pessoas de pé, o passa-passa das casas e mais uma vez a galega
ingênua.
Suas mandíbulas largas, mais pareciam
as minhas, me faziam conjecturar: será mulher mesmo? Os dedos delicados, os
ombros estreitos, a bunda redondinha, os seios como maçã, a boca escultural num
desdém infinito. Roia as unhas com fome, não eram ânsias, mas nojeira que dizem
dos homens e mulheres desleixados. Contudo, ela não era má mulher. Tinha tudo
no lugar, feminina e possante. Não de posse, mas potência.
Radiguet contemplava a tal criada no
telhado dos Maréchaud, que gritava em desvarios e medo dos donos da moral, seus
patrões. Eu estava cansado, dia cheio, tinha poesia como inspiração, mas
resolvi vir aqui. E na minha interminável solidão das cadeiras de ônibus, como
se tivesse um estigma a me envolver de “Nunca sente ao lado deste moço”, eu
relutava em prestar atenção em mim. Absorto na arte de observar as outras
pessoas ensimesmadas, meio caleidoscópico, eu via a moça loura ir-se.
Agora era só eu. As páginas de
Radiguet já me esgotavam. As paradas foram passando, o ônibus seguia veloz, um
ambulante que vendia dentro do ônibus me oferecera algo, não entendi o que ele
quis dizer. Entrou outra moça. Morena, peituda, olhos negros, bronzeada, nariz
pontudo, magra. Livros na mão, camiseta verde, quis parar na cadeira a meu
lado, mas obedeceu ao estigma: outra cadeira serve melhor.
Eu me afeiçoei a ser enxotado
mentalmente. Nesse aspecto, eu sou livre. Não queria ser. Queria chamar a moça,
Por favor, sente-se comigo, partilhe como foi seu dia, me diga suas fantasias,
os sonhos que lhe despertam toda noite, o que lhe aflige, o que achou de mim,
sou moço respeitador, tenho compromisso, quero só sua doce atenção, mesmo que
fadigada. Deixe para lá. Melhor que sente em outro canto. Só que justamente
sentou atrás de mim. Tive que me virar, indiscretamente, para ver-lhe o rosto
meigo e profano. Não me dirigiu palavra, nem sei o que pensou de mim. Também
fui rude, lhe olhei dos pés a cabeça, parei nos peitos e fiquei por um segundo.
Está bom. Desceu e passou do meu lado da janela. Esgueirou-se entre as pessoas
da parada. Sumiu no mundo. Como todas elas fazem. As pessoas, claro. E eu não
tenho ciúme de mim, não me respeito. Fico aos delírios, babando de sono e ainda
aqui. Inerte, vazio de sentimento autoconfiante. Maluco, achando que o mundo
irá mudar. O que as pessoas fazem? Insistem em apenas existir.
A minha linha, Vila da Sudene, chegou
à parada, pulei na calçada e segui. Vim em casa, fiz tudo certinho, na
esperança de que o fim de semana chegasse, e junto com ele, a felicidade, o
amor, a paz. Una-se tudo e temos o prazer.
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