O ponteio da racionalidade litoral



Do dia para a noite, implodiram o Restaurante Ponteio, na praia de Boa Viagem. Nunca comi lá. Porque não pude, porque não tive como. Um restaurante fino, preço razoável, arejadíssimo, vista para o mar grátis.

A carne suculenta, cortes precisos, o sangue escorrendo no filé mal passado, eis a arte da churrascaria, do sal, a brasa e a fumaça. Um bezerro estatelado pela injeção letal ou a martelada rudimentar, para servir quatro mesas esfomeadas.

Uma mesa próxima ao banheiro, um casal de homens e uma amiga. Na varanda, duas mesas vizinhas, um uísque numa mesa, na outra mesa umas Cocas KS. A mesa do funcionário do mês da prefeitura S.A. ninguém sabe onde foi postada.

Defronte do Ponteio, pessoas se amontoam numa faixa de areia. Guarda-sóis, cadeiras reclináveis, isopores e a panela de caldinho preta de fumaça. Sobre o carvão úmido, a grelha engordurada sustenta espetinhos de carne e frango, temperados com um molho de água salobra, vinagretes, coloral, sal. O caldinho de camarão, repleto de outras iguarias que não o crustáceo, servido às mãos dos banhistas, num copinho de plástico, valor irrisório. Os pregões: “Olha o camarão!”, “Ovo de codorna, amendoim e castanha!”, “Ostra fresquinha!”...

O terraço do restaurante é arborizado, uma ventania pura. A maresia foi carcomendo a chácara litorânea, o juízo e o apetite. Derrubaram o Ponteio antes de eu poder concebê-lo. Eu estava fitando-o do calçadão de Boa Viagem, enquanto suas árvores eram esvoaçadas pela brisa, sua fumaça flutuava escassa pelo ar da orla.

A construtora ocupou os escombros, que não deixou feridos, com seus engenheiros, arquitetos, mestre de obra e pedreiros. Esses destruíram a comedoria, juntaram pedras para erguer um edifício insosso.

Lá, haverá cozinhas e salas de jantar, para pessoas digerirem sua fome. Uma janela apertada, um condicionador de ar, a varanda estreita, a mesa acanhada. Do parapeito, vê-se um foco de fumaça aqui, outro acolá: Pequenos negócios, pequenos Ponteios praieiros.

Eu não degustei a ideia. Trocar um restaurante por um prédio? E onde comeremos sofisticadamente? Onde apreciaremos carne mal passada, delícias em rodízio? Onde experimentaremos a diversidade? Tenho  de me resignar às comidas caseiras, caldinhos, espetinhos, cachaça, cerveja quente, baixaria, delinquência, superficialidade, conflitos, status quo.

Nunca comi no Ponteio, nunca comprarei um apart. à beira mar, não degusto, não aprecio, nem prestigio. Eu pechincho, me entalo com farofa, faço careta pra cerveja quente, me esquivo de briga feia, pego sol até queimar, me sujo de areia e sal. Calado, assisto a demolições e reconstruções. Em outro ponto da cidade, alguém assalta, alguém bate cartão, alguém se prostitui, alguém se existe...

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