O presente.



Acordei com os olhos ardendo. O céu estava nublado, porém fazia calor. Queria ter ficado na cama, só que o dia me reservava a rotina. Levantei-me com muito custo e fui à geladeira, catar ingredientes para o café da manhã. Os carros buzinavam loucamente, a calçada cheia de gente apressada, as vozes pesadas por sobre os pensamentos. “Eu não quis pagar mesmo”, “Pense numa nêga gostosa”, “Mariana estava adoentada e eu fui em seu lugar”, “Eu posso fazer isso”... As pessoas iam cumprir seus papéis.

Pendurei a bolsa no cabide e liguei o computador. A rede social estava empestada de felicitações ao campeão brasileiro, imagens de repúdio aos assassinos e ladrões de colarinho, demonstrações de afeto, bênçãos e frases de efeito. Era uma segunda-feira comum e fazia um intenso calor. Peguei um pouco de chá gelado, lembrei-me da secretária novata. Olhei sobre a divisória e ela estava lá, decote à mostra, detida no seu relatório, mordendo a haste dos óculos, envelopes no canto do birô, canetas numa lata. Deixei-a.

Eu tinha algumas pautas para escrever, mas amanheci perturbado. O escritório me devia as bonificações, era o dinheiro que eu precisava para comprar uma nova televisão, além de quitar alguns débitos antigos. Na minha cabeça já enveredava a calvície e no peito umas incursões da hipertensão cardíaca. Eu não entendia porque esse dia era diferente, não conseguia lembrar. Fui ao parapeito, acontecia um acidente na avenida.

Dedos em riste, gritaria, burburinho, murmúrios, um engarrafamento se formava ante o acidente. Crianças com seus drops costuravam os carros, com um sorriso estampado na cara. No canto da calçada uns jovens fumavam, outros se esmurravam. Dentro do carro, uma mulher falava ao telefone, ríspida. Na tabacaria, um senhor bebericava um drinque enquanto lia o jornal. Era a vida.

Eu lembrara que tinha completado 35 anos e estava sozinho no mundo. Familiares viviam suas vidas, eu planejava, cumpria os planos e ninguém podia dar mais que uma tapa nas costas e um sorriso forçado. Não fumava, nem bebia, tinha um bom emprego e já havia namorado algumas vezes, mas nada a sério. Sentia a idade me corroer, a retina permanecia intacta, flagrando o que chamamos de vida. 

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