Dirigir sem partir a cara


Bebericava um copo de guaraná, despretensiosamente, quando Rafaela me entrega as chaves do carro, sem me avisar nada. Ela olha pra mim e diz ao meu cunhado: ele já é habilitado! Meu cunhado não deu a mínima. Eu, inexperiente, tremi as bases por dentro. Por fora, confirmei circunspecto. Saímos de casa em direção ao banco, para sacar uma quantia. O Fiat Palio estava estacionado num declínio duma rua de barro. “Deve ser fichinha”, eu pensei. Entramos no carro, afivelamos os nossos cintos. Sozinhos no carro, girei a chave, olhei os lados e dei partida...

A saída triunfal deu início à minha melancólica primeira volta desacompanhado de motorista que me instruísse. Perguntei: “Rafaela, tu estás com medo?”, ao que ela respondeu: “Lógico né? Mas vamos embora, é só ir com calma!”, foi o bastante.

Pé na tábua pelas ruas de Goiana. Fui seguindo, tranquilo, seguro, atento, as vias estavam desobstruídas, alguns ciclistas e pedestres circulando em local indevido, mas só. Normalíssimo para uma cidade de interior haver pedantes sulcando os veículos. Eu aliviava no freio, trocava marchas, desviava de um lado pra outro, acelerava um pouco, na maior parcimônia de aprendiz.

No primeiro cruzamento, é cobrada a decisão: segue em frente ou toma a esquerda? Raciocinar rápido é um mecanismo intrigante e me foi exigido. Segui em frente, acertadamente. Um pouco depois, é exigida nova tomada de posição: esquerda ou em frente? Optei por continuar na mesma direção. Desta vez foi abacaxi para mim. A rota foi prejudicada, tomamos um caminho mais logo e no fim da rua, num cruzamento, fiz o carro morrer na minha confusão.

Rafaela vinha apreensiva, com uma mão no cinto e a outra nos apoios de segurança. Ela ia me alertando para os detalhes que a minha mente nervosa deixava escapar. “Tu freia em cima da hora, não pode ser assim. Tu tem que vir freando aos poucos!”, dizia ela, preocupada. Eu estava confessamente feliz em dirigir ao lado dela. Eu guiava o carro com certa leveza. Nós ríamos à toa, superando cada obstáculo juntos. Ela, mesmo tensa, fazia ótima companhia, bem humorada. No meu coração, o sentimento de responsabilidade.

Desliguei e liguei novamente o Palio e seguimos rumo ao banco, que não estava tão distante. Pouco mais de um quilômetro, chegamos à rua Direita, dei seta para a esquerda, entrei no beco, virei à direita e logo estávamos em frente ao Banco do Brasil, que tinha à sua fronte alguns carros estacionados. Achei lugar mais livre um pouco à frente, onde estacionei o carro numa manobra só, contente. Fechamos os vidros e saímos.

Ao deixar o auto, um rapaz nos abordou perguntando se tínhamos uma caneta para emprestar. Trêmulo que estava, respondi que não tinha e olhei para Rafaela. Ele se foi e nós dissemos um para o outro: “Pensei que fosse um assaltante”. Rimos da desventura. Minuto depois, dei pela falta da chave do carro. Mexi nos bolsos, olhei para os lados e lembrei: a chave ficou na ignição! Que merda. Disse à minha moça e ela caiu na risada, debochando da minha distração. Eu, idiota, peguei a chave, travei o carro no alarme e fomos ao banco.

Contratempos à parte, fui ao caixa automático, única opção num dia de domingo, e tentei sacar o meu dinheiro. Um, dois, todos os caixas de saque, nenhum dispunha de dinheiro. Alguns dizem que pelo domingo, o banco se priva desse serviço por conta dos assaltos. Ficamos indignados, mas fazer o quê? A ida ao banco virou história, mais do que um simples saque, a nossa primeira volta de carro. Disse: “Rafaela, a gente arruma esse dinheiro emprestado”. Não era muito, só precisava de dinheiro para viajar e alguém devia tê-lo em condições de fazer empréstimo. Pegamos a estrada, de volta para casa.

Uma ré de leve, manobrei de volta à via e retornamos pra casa. Na volta, a mesma situação: uma velocidade razoável (nada mais que 40 km/h), Rafaela ia me dando os toques, eu ia conduzindo as nossas vidas em perigo. Nessa volta, a evidência foi as minhas “resvaladas” nos carros e pessoas que estavam nos acostamentos. Rafaela se amedrontou: “Porra, tu tira muito fino das coisas. Eu morro de medo de bater, vê se toma cuidado”. Já estávamos quase chegando. O fim do percurso foi só desviar de ciclistas malucos (que no interior, são uma iguaria), aliviar nos buracos das ruas de barro e estacionar o carro no declínio. Pra mim, foi batata, como dizem os senhores.

No final, o dono do carro não sabia que eu era inexperiente e nos possibilitou uma experiência exitosa. Óbvio que poderia ser trágica, mas foi mágica. Eu e Rafaela nos deleitamos na minha puerilidade. Desci do carro arquejando, mas exultante. Rafaela não conseguia esconder o brilho nos olhos: “Porra, andei de carro com o meu namorado. Tu és foda, véi!”. E dizia até a minha fala: “Porra, andei de carro com a minha gata!”. No fundo, era isso mesmo que eu queria dizer. Ao devolver as chaves, ninguém suspeitou da nossa empreitada. Cuidei em me sentar, pra acalmar os ânimos e prestar contas da nossa loucura: “Essa volta foi só o início. Nosso negócio é botar o pé na estrada”.


Depois disso, voltamos à rotina. Fim de papo.

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