o oráculo dos homens.


A rede balança de um lado para o outro, lentamente. O barulho do armador da rede enferrujado corta o silêncio. Seu Jaime alisa a barba turva, há meses sem ver lâmina. Marlene já deitada, depois de alguns comprimidos. O apartamento estava completamente sujo, revirado ao avesso, depois de mais uma reunião de família.

Seu Jaime, mãos postas, orava pela família, pedia a deus mais que tudo para abençoar os netos, para protegê-los, para afastá-los do mal, da imundície do mundo. Seu Jaime orava ingenuamente...

Mateus chegou em casa um pouco entristecido depois de um dia nebuloso. O chefe tecera anti-elogios nada fraternos, admoestou pela última vez o jovem irresponsável. Absorto na vida, Mateus nunca se permitiu o grito, e como era telúrico em si mesmo, preferia a sólida solidão. A mesa estava tomada de farelos de bolacha, por onde passeavam pequeninas baratas. Mateus, num ato de fúria, passou o braço pela mesa e bradou para dentro, como um rosnado. 

Alisou os cabelos para trás, respirou fundo. Estava um tanto perplexo, tanto que não sabia se guiar pelo apartamento. Pescou com o olhar a caixa de ferramentas, numa caixinha azul estava um pacote com a erva, o papel, o fogo. No canto da sala, uma garrafa de vinho onde a rolha fazia pouca pressão. Mateus virou um gole forte, as lágrimas escorreram pelo canto do rosto. Foi na varanda, deitou e por lá ficou. Apertava o cigarro de maconha nos lábios com tragadas longas. O cheiro se alastrou...

Era possível ouvir a reza de Seu Jaime como um grande cochicho a penetrar a madrugada. "Pai nosso que está no céu, santificado seja o vosso nome...", orava o velho. Encolhido pelo frio, ele dizia palavras rápidas, mal ditas, engasgadas, gastas. Eis que o odor da maconha invade a varanda de Seu Jaime, interrompendo sua oração. O velho tem um ataque de espirros. Segura as abas da rede, a respiração enfraquece por alguns segundos, a garganta se fecha, mas logo responde...

Olhos avermelhados, pulsação forte, Mateus estoura uma pequena taça de vinho na mão, que sangra. A mão sã segura o cigarro artesanal e já vai à boca, um trago forte e violento. A ponta do "charuto" reluz no escuro da noite. Uma fumaça plúmbea se destaca no vento fresco que aturde aquele instante...

Seu Jaime escapole da rede e grita: TEM ALGUÉM FUMANDO MACONHA AQUI! POLÍCIA, MEU VIZINHO É UM MACONHEIRO! AAAAAAAAAHH! PELO AMOR DE DEUS, ALGUÉM ACUDA! ESTOU PASSANDO MAL COM ESSA FUMAÇAAA! BANDIDO! AAAARRGHHH! SOCORRO!!

As luzes do prédio vizinho começaram a acender, crianças chorando, palavrões em bom som. Marlene mantinha o sono pesado, enquanto Jaime desmoronava. Da árvore que separava os dois prédios do condomínio, ouvia-se o barulho das aves em polvorosa...

Mateus rolava a dar risadas. Na sua porta, vizinhos de outros andares esmurravam. Uma vassourada cutucava o piso do apartamento, um sofá se arrastava no andar de cima. Em baixo da árvore, sob o estrondo dos pássaros e grito de pavor da vizinhança, um casal se recompunha. A mulher fechava o zíper. O homem enxugava a boca, suja de fluido.

As crianças que estavam no pátio correram para casa e deixaram a bola rolar para o meio da rua, onde foi esmagada pelo caminhão do lixo. Uma chuva desceu com gotas que pesavam tonelada. No barraco, caía um pingo de vela na mão de Damásia. Dos prédios, a calha tremia com o peso da água, os gatos se arranhavam loucamente.

Mariluce jogou os búzios e logo depois teve um ataque fulminante. O padre passava pela rua, quando seu guarda-chuva foi levado pela ventania, junto com a batina. Cleide gargalhou até cair, depois de inalar a fumaça da erva. Mateus havia desmaiado, caiu num sonho ontológico e sem fim...

Seu Jaime, que teve as cordas vocais destruídas pelo horror, jazia no chão, enquanto Marlene dormia o sono dos justos.

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