Testamento de um inválido


Ouço passos no teto do meu apartamento. Alguém no andar de cima está preocupado com a vida. Não sei. Eu já não ando pelo meu apartamento. Chego do trabalho, sacudo a bolsa no sofá, vou direto ao quarto. Me molho no banheiro da suíte e depois durmo. Não faço refeição em casa. É tempo de insegurança total. Não deixo marcas pelos móveis da casa. Talvez um dia eu cometa um crime e alguém procure minhas digitais, meus pertences, fios de cabelo pelo chão, nos dentes de um pente fino... É tudo precaução.

Lavo as roupas em lavanderias diferentes, de semana em semana. Ao chegar no quarto, dispo-me do terno, quando já estou com uma roupa de dormir por baixo. Tomo banho e coloco essa roupa de dormir de novo. Guarda-roupas? O fluxo de lavagem de roupa me permite uma roupa limpa todos os dias. No máximo, uma muda de cuecas na pasta e só.

Nesses dias me peguei fumando na esquina, um cigarro dos diabos, a garganta ardia como pimenta. Joguei o cigarro fora, tomei um gole d'água: coisas da vida. Mas ainda fumo de vez em quando, porque alivia a tensão.

Os passos no andar de cima arrefeceram nos últimos dias. Noutro dia, à tarde, parece que arrastavam um sofá. Parece-me, ainda mais, que tinha alguém nesse sofá arrastado. Alguém magro. Seriam dois homens no andar de cima, um fetiche de um mostrar força ao outro. Mulher não teria força para arrastar um sofá daqueles. Mas veja mesmo!

Nem entendi porque usei essa exclamação?! Outra? Está bom. Chega. Bastam os pontos, porque não quero deixar vestígios da minha personalidade. Já não basta essa desconfiança. Mas nos tempos de hoje, quem não desconfia? Mais algumas interrogações??? Quem não desconfia acaba pisando na boca do lobo.

Deixei de tomar remédios, evito ao máximo falar com estranhos, não leio poesia, não rasgo folhas de ofício, nem escrevo telegrama ou e-mail. Queimo os recibos da aposentadoria e não passo mais que cinco minutos na fila de pagamento. É isso. Ninguém virá me buscar senão a morte. Mesmo assim eu me previno. 

Depois de morto, podem utilizar-me para rituais satânicos, experimentações científicas, não quero nada disso. Quero que meu corpo esfrie, decomponha-se corretamente e não deixe o que falar. Quanto menos alarde melhor.

Só para que tomem nota, não casei, não tive filhos, não me amiguei com seu ninguém. Sou só, sóbrio, conexo e tenho dito. Nunca fiz amigos e nem tive vizinhos de que me recorde o nome. Só esses senhores que de vez em quando arrastam o sofá.

Meu único transtorno é essa compulsão pela verborragia, vou ditando, ditando... Não espero que ninguém leia esse texto, mas mesmo assim escrevo para deixar à posteridade. O que farão dessas palavras chulas pouco importa. Essas palavras servem mais como álibi do que qualquer outra coisa. Só para dizer que tive alguma importância enquanto vida.

Se tive Maria? Nenhuma. Nem fui homem de estar cortejando moça pelas ruas. Fui circunspecto na minha existência ateia. Para que deus? Para a gente gastar prece à toa. Para que saibam, não gastei a minha vida com  pecados. Fiz o que pude para manter-me longe da gastura. Odeio bajuladores, ascensoristas, vendedores ambulantes e promotores de vendas que lhe importunam nas calçadas.

Quem leu até aqui pouco sabe de mim a não ser minha compulsão. Sei que tenho, mas é necessário. Nesses dias de hoje que tempo temos para a paixão? Não temos. Ponto. Viver nesta cidade é para se enlouquecer de calor e ainda há comerciais falando de felicidade? O que é isto? Não sei, não é preciso. Para que? É um produto não tem preço. Irão nos arrancar até o último centavo sem que encontremos felicidade. Por isso gastei apenas a ponta do lápis e um pedaço de papel para dizer o que deixo de herança: absolutamente nada.

Comentários

Postagens mais visitadas