A roda-gigante




Imaginem só, um dia desses vi que instalaram uma roda-gigante dentro do Shopping Recife. A maior roda-gigante indoor de não-sei-onde. Do primeiro andar do mall, fui ver a recordista. A criança subia e avistava umas lojas. Na descida, a hora do frio na barriga, mais vitrines e pessoas com sacolas nos braços. Não, roda-gigante não era assim, pra mim.

Em Itaquitinga, cidadezinha pequena, pacata, interior pernambucano, onde a noite tem um sabor que sentimos no nariz. Cheiro de relíquia, de verde esvoaçado, as flores na porta de casa das beatas. A diversão, à noite, era passear pelas ruas da cidade. Eu saía com os amigos. Subia, descia, parava pra conversar, paquerar. Tomava um refrigerante bem gelado. 

A cidade estava iluminada pelos postes de luz amarelada. Tinha chovido no dia anterior, por isso os mosquitos rondavam próximo às luminárias. Nas ruas mais desertas, cheias de mato, os sapos coaxavam em busca de comida.

Lá longe, num bairro do começo do município, um parque de diversões instalado no calçamento de paralelepípedo, bate-bate, pula-pula, carrinhos, motos, carrossel e a roda-gigante. Vários assentos coloridos com uma pintura encardida, a estrutura iluminada por lâmpadas compridas, assentos em vez de cabines, estatura suficiente para observar a cidade do alto, sem a menor semelhança com London Eye. 

Festa de padroeiro, São José. Pelas bocas das beatas e das carolas e do padre, tanta reza, tanta promessa, meu deus. Procissão, turíbulo, hóstia. Pelas ruas, um cigarro, fogos de artifício, tiros no céu.


Meninas de braços dados, dando passos no mesmo ritmo. Nas calçadas, os senhorios punham a vida em dia, os fatos à tona, os boatos à baila, todos ficavam sabendo das intimidades alheias, a tradicional fofoca. Nada a reclamar, porque a fofoca é a profana cultura do interior. A modernidade não há de tocar neste “defeito”.

Sem saudosismo, essa imagem de cidadezinha ainda me dá prazer. Vejo em livros, descrições de cidadelas francesas, espanholas, o velho Graça falando do semiárido, Guimarães Rosa sertão Minas. Ainda em Minas, Drummond aponta o ferro nas calçadas de Itabira. Manuel Bandeira relembra um Recife lá do fundo da memória, parecido com a minha cidade do interior.

E eu não poderei ter a minha Itaquitinga preservada nas páginas de algum livro. Não poderei, porque não houve, e se houve, só poetas menores. E até soa hipócrita, que já blasfemei tanto contra a alma minimalista desta cidade que é tantas outras, que é tantas almas, que é coração em forma de casas e ruas e gentes e inocência. 

Quero, então, lembrar apenas da roda-gigante. Da cabine, um ingresso a preço mísero. Na companhia de um dos meus irmãos, sentamos numa cadeira. O rapaz selou o assento e nós esperamos a corrida. Aos poucos, o maquinista vai girando a roda e os lugares vão sendo ocupados. Nosso coração se enche de vento frio.

Chega uma hora que a roda não cabe mais gente e ela apenas gira. Aos poucos, vemos minúsculas as cabecinhas lá embaixo, no calçamento da rua. As gambiarras de luz iluminam o local do parque de diversões. Não esses playcenters. Era algo mais cabal, que petrificava o olhar da gente, nos brinquedos.

Mas a roda-gigante tinha um encantamento maior. Toda essa sorte de detalhes de Itaquitinga se entendia através das luzes, do alto. A roda girava e lá no cume a gente sentia o corpo querendo voar, o mais alto que o homem poderia alcançar. O topo da montanha dessa "roda-viva", com o perdão do plágio.

O coração todo descomposto pela circunstância. Os olhos suspensos, finalmente a palavra “panorâmica” ganhara algum sentido. Mas não era uma visão tecnicista, de a gente dizer quantos metros, casas, ruas e pessoas vimos de lá de cima. Não era coisa de se dizer que esteve no topo de World Trade Center. Era preciso estar lá em cima, com a alma desquitada de qualquer preocupação.

O que a gente podia ver eram as árvores balançando, o prédio da prefeitura, a caixa d’água enorme, que escondia um segredo dentro. Na igreja católica, podia ver a cruz, isso bem de longe. Eu estava num bairro distante, na periferia. Era melhor que estar no Centro. A gente via Itaquitinga do começo ao fim. Como um voo de helicóptero. E os telhados, um sem número de casas, tantas histórias guardadas por telhas amarronzadas.

Não bastava sobrevoar, tinha que reter a visão no fundo do olho, porque a cadeira desce e sobe, desce e sobe. Quando se olha pra baixo, vê as máquinas trabalhando para fazer girar toda aquela ferragem. As cadeiras girando no próprio eixo. E se a gente quisesse apimentar a coisa, podia se balançar, como numa cadeira de balanço. O negócio ficava agitado, mas eu, só 10 anos, tinha tempo de validade curto. Logo a brincadeira dava medo e eu caia no riso eufórico, querendo dizer: pára!

Meu irmão, Márcio, estava do lado. Mais velho que eu, parecia que morava no topo da roda-gigante. Como um gavião, ele parecia não se cansar de observar aquela paisagem onírica, saber todos os detalhes. Na verdade, ele nem morava lá, veio apenas me visitar.

E com umas 10 voltas, chegava o fim da nossa corrida. O maquinista tirava o pino que segurava uma barra de ferro em nossos peitos, logo estávamos liberados. Todas aquelas lembranças de um passeio nada comum. Nada de monotonia. Eu andar na roda-gigante à noite, que a cidade ficava iluminada, mais bonita.

Hoje, criam uma roda-gigante indoor. Pra que isso? Pra acorrentarem as nossas lembranças no passado e atrofiarem a coisa lúdica até não existir mais. Pra resumir a experiência num dispositivo qualquer, na tentativa de encontrar um sucedâneo. Para aprisionar nossos olhos em coisas miúdas e insignificantes, essas que o dinheiro pode comprar.

Mas que bom que existem as palavras e eu posso lhes dizer. A roda-gigante foi o alumbramento da minha infância. Quem sabe, dessa coisa que chamamos vida.

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