Mundo de formigas

Uma e meia da manhã. Meus dedos já úmidos de lavar pratos, meus olhos ardendo depois de um domingo qualquer. Ainda restava duas panelas, dei um tempo, fui na porta olhar a rua. Do lado direito, a fábrica fumegante. No lado esquerdo, a rua deserta.

A noite estava fria, várias folhas espalhadas pela rua, umas secas, outras verdes. Vez por outra, um carro passava barulhento. Três chaminés da fábrica soltavam uma fumaça cinza e no alto da torre, a bandeira nacional tremulava frivolamente. O descampado da fábrica era inabitado, quando de dia percorrido por bois. Umas luzes pontuais iluminavam a alameda que levava à fábrica. As casas vizinhas estavam escuras, sozinhas.

Tudo era silencioso, exceto o vento que vivia a noite. Revirava as folhas, empurrava uma bolsa plástica pela rua, dava som à fumaça das chaminés, acariciava as árvores, tocava meu ouvido. No alto, o céu e suas estrelas milenares. Explosões distantes, luzes intensas, reação dos gases. Na minha visão, as estrelas eram meros pontos luzentes imersas em um céu negro. Galáxias, formações estelares, não diziam muito a mim.

A noite era grandiosa. Um espetáculo digno da nossa existência. Cada segundo intensificava ainda mais a dor da retina, que ia envelhecendo, se chocando com a realidade. Uma pancada de ar frio eriçou meus pelos. Lá dentro, as moças arrumavam a bagunça no quarto. Ninguém me percebia, eu passava alguns segundos sozinho, sem língua, sem humanidade. Eu e o universo, à sós. Isso não costuma acontecer.

Uma coceira na canela, alisei e veio sangue na minha mão: um mosquito. Limpei na bermuda preta e deixei pra lá. De repente, uma luz amarela surgiu na árvore da rua. Foi se avivando até passar um jipe. O motorista circunspecto e o passageiro com a cabeça deitada no porta-luvas. Estaria morto? Não se sabe.

No muro em frente à porta, a penumbra não me deu detalhes, mas percebi as formigas passeando. Uma a uma, elas passavam, não se ouve seus passos. Caminhando pelos meandros do muro cimentado até se chocarem contra meu dedo. Correria geral! No mundo delas, a gritaria deveria ser louca: Um gigante! Um gigante!

Deixei-as viver e fui para a minha louça. Ainda restavam duas panelas. Detergente na bucha, esfreguei a gordura. Eis que surge uma nova formiga do buraco da parede junto à pia. Trôpega, ficou parada sem destino. Minha primeira reação foi matá-la. Usei um fósforo como arma, pressionei a ponta vermelha sobre a cabeça da pequena, que caiu da parede na hora. Não esperava, mas outra formiga saiu em disparada de dentro do buraco. Não alcançou a primeira, que já havia caído morta, decapitada.

Tomado por um espírito devastador, saí esmagando todas as formigas que passavam ou se dignavam a entrar no buraco. Esse universo era habitado por, no máximo, dez formigas. Elas deviam ter casa, comida e roupa lavada dentro do buraco. Eu lhes destruí a moradia sem mais nem menos. Fui uma espécie de deus ou diabo.

Não sei bem, mas dizem que matamos dezenas de formigas diariamente. Aquela primeira formiga que quase foi salva por uma segunda, esta cena me pareceu coisa de casal. Um casal de formigas dizimado para minha diversão. Deixaram filhotes, entes queridos, recordações?Quem sabe? Terminei minha louça e voltei para a porta, enfim.

Lá fora, o ruído das chaminés da fábrica e o vento a revirar as folhas da rua perduravam. As estrelas a explodir no céu, o silêncio universal do descampado da fábrica, as luzes. Pior de tudo era o inesperado da vida. Esse amontoado de “gigantezas” era o que me cercava naquele momento. Não havia um humano lavando louça. Não que eu soubesse. Havia só o inesperado da vida, eu à porta de casa. No quarto, as moças guardavam objetos. Eu sozinho no mundo. Alguém que me guardava no coração. O frio apertou. Fechei a porta. Já são quase duas horas da manhã.

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