Os estudantes desconhecidos de um continente ancestral
Nesta foto, alguns estudantes africanos e brasileiros - Foto: Neab-UFPE
Lassana
terminou de usar o computador, em uma lan house, e percebeu que
alguém havia esquecido o celular na cabine ao lado. Ao pagar pela
internet, aproveitou para deixar o aparelho nas mãos do dono do
estabelecimento. “Acho que alguém esqueceu o celular. Segura aí,
depois você liga para a pessoa e entrega”, disse. Quando Lassana
saiu do lugar, o homem o chamou de volta, olhou-o de cima a baixo,
mas hesitou e desistiu de falar.
Em
outro dia, saindo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) pelo
portão do Hospital das Clínicas, na Cidade Universitária, Lassana
se deparou com uma senhora correndo. Ele se assustou, porque teve a
impressão de que a mulher fugia dele, mas continuou seu caminho.
Os
relatos são do psicólogo do país africano Guiné Bissau, Lassana
Danfá, de 28 anos, mulçumano, da etnia mandinga. Ele passou cinco
anos de sua vida em Recife, onde obteve a formação em psicologia
pela UFPE, através do Programa Estudantes-Convênio de Graduação
(PEC-G). Por meio desse programa, cerca de 150 alunos de origem
africana estudam em universidades da capital pernambucana. Hoje,
Lassana cursa mestrado em psicologia.
Ele
chegou a Recife em 2009 e com três meses de vivência na cidade,
percebeu um fato determinante: o brasileiro é preparado para
disfarçar o preconceito. Diferente do europeu, que expressa sua
“xenofobia”, o brasileiro finge que está tudo bem. Nas duas
situações expostas no início deste texto, nenhuma palavra foi
dita, mas é possível decifrar as entrelinhas. Lassana é uma das
vítimas constantes da discriminação, por ser negro e africano.
O
professor mineiro José Bento Rosa é porta-voz dessa condição
social. Docente da UFPE na disciplina de História da África, Bento
está próximo aos estudantes da África nas atividades do Núcleo de
Estudos Afro-Brasileiros, o Neab. Quase uma figura paterna, o mineiro
passou a ouvir o relato cotidiano dos jovens, que encaram a
decepcionante experiência do preconceito no Brasil.
Uma
das “denúncias” feitas a José Bento remonta uma situação
delicada, ocorrida em 2013. Um dos estudantes teve dificuldades com
um cartão bancário, ao utilizar um caixa eletrônico em um
supermercado. Um senhor que estava na fila fez queixas ao vigilante
do local, alegando que o rapaz negro tentava arrombar o equipamento.
“Ao invés de ir lá auxiliar, o senhor já foi querendo fazer
denúncia à polícia, afirmando que ele queria saquear o caixa. Como
alguém vai roubar um negócio desses de dia, na frente de todo
mundo?”, criticou Bento.
Apesar
dos desafios impostos pela discriminação, o vínculo entre Brasil e
países africanos segue perene desde o início da segunda metade do
século XX. A UFPE conta, hoje, com 85 estudantes, a Universidade
Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) com 15, além de alguns que
estudam nas particulares UNINASSAU e Fafire. Nas bancas da
Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), estudam 38 angolanos,
mas todos são ligados ao convênio com a construtora Queiroz Galvão.
Os dados foram levantados pelo Escritório de Assistência à
Cidadania Africana em Pernambuco (Eacape), através do gestor da
entidade, o pernambucano Altino Mulungu.
O
PEC-G traz ao Recife estudantes dos países africanos que falam
língua portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e
São Tomé e Príncipe. Além desses, é possível encontrar alguns
alunos vindos do Senegal, do Congo, de Benin, Togo, entre outros.
Ao
falar, os lusófonos possuem um sotaque truncado, dito mais
rapidamente, à maneira dos portugueses. Já os alunos que falam
francês, por exemplo, sentem grande dificuldade em se comunicar.
Para esses, a universidade oferece uma formação de português que
dura um mês. Com o tempo, todos se habituam.
Quem
entrou em maus lençóis por conta da língua foi o estudante
cabo-verdiano Nelson Mendonça. Ele contou que, ao chegar, foi
recebido pelos alunos africanos e só depois de um mês é que
conseguiu interagir com algum brasileiro. ”Eu não conseguia
entender muito eles e vice-versa. Cheguei a me questionar porque isso
acontecia, mas com o tempo fui aprendendo a conviver com todos”,
comentou.
Anualmente,
esse mosaico de nacionalidades preenche o calendário cultural da
UFPE. Os estudantes costumam comemorar a data de independência de
cada país. Entretanto, uma festa maior reúne todos os alunos
africanos em torno de uma mesma bandeira. O Dia da África é
comemorado em 25 de maio. Segundo o professor José Bento, esse dia é
amplamente celebrado em todas as universidades do país onde estudam
africanos.
A
data é mundialmente festejada desde 1972, quando foi instituída
pela Organização da Unidade Africana (OUA). Na UFPE, se brindava
desde que havia lá estudantes da África, mas em 2012, o Neab foi
criado, possibilitando maiores atenções para o evento. Com aportes
de diversas pró-reitorias, principalmente a Pró-reitoria de
Extensão (Proext-UFPE), o 25 de maio de 2012 se tornou um dia
simbólico para estes estudantes.
Durante
o evento, o doutorando em antropologia angolano Ismael Tcham
protagonizou a mesa “O processo de integração dos estudantes
africanos da UFPE”, no auditório da Associação dos Docentes da
Universidade Federal de Pernambuco (Adufepe). Tcham leu para a
plateia lotada um documento relatando situações de descaso pelas
quais passavam os alunos.
O
sacrifício na ‘diáspora’ a caminho do Recife tem início no
seio familiar. Os parentes se mobilizam para financiar a vinda ao
Brasil, que custa a média de R$ 4 mil. Os estudantes desembarcam no
Aeroporto de Fortaleza e partem para a capital pernambucana. No caso
do já citado Lassana, essa viagem foi feita de ônibus.
“Quando
chegam à cidade e à universidade de destino, os estudantes se
deparam com a falta de aparato inicial de acolhimento”, contava
Ismael. A reitoria sugere alguns hotéis e pousadas, pois aos
africanos é proibida a morada nas residências universitárias. O
relato do doutorando angolano data de 2012, mas segundo o professor
José Bento, no início de 2014 a situação ainda não se alterou.
Um
dos estudantes dizia:
— A
maior dificuldade que encontrei aqui foi a de negociar a casa para
morar, não conhecia ninguém. Às vezes você sente aquela sensação
de que os proprietários não confiam na gente, eles exigem coisas
demais talvez para não falar “não”, assim na tua cara.
Apesar
das narrativas infelizes sobre preconceito, é possível reconhecer o
Brasil positivo. A música dos baianos Gilberto Gil e Raul Seixas e
do pernambucano Luiz Gonzaga passou a figurar no gosto de Lassana
Danfá. Clarice Lispector foi um nome que saltou à vista dele, na
literatura brasileira. Das cidades pernambucanas, o psicólogo
conheceu e curtiu Gravatá e Garanhuns.
Após
cinco anos de convivência com o povo recifense, Lassana pôde traçar
um comparativo entre os guineenses e brasileiros. Guiné Bissau
possui 1,6 milhão de habitantes, enquanto que apenas na cidade do
Recife vivem 1,5 milhão.
Na
capital pernambucana, as relações pessoais acontecem de maneira
horizontal, onde todos se tratam com igualdade. Já em Bissau, a
hierarquia ainda é vertical. Isso implica no trato dado às
diferentes camadas sociais. Danfá usou a universidade para ilustrar
esse exemplo.
— Em
Bissau, as pessoas vão para a faculdade com uma roupa mais composta
e tratam o professor como senhor. Aqui em Recife, as pessoas vão de
short, camisetas, bermuda e chamam o professor de tu.
Danfá
enfatizou, também, como se dão as relações amorosas.
— As
mulheres daqui são menos frescurentas. Quando gostam de alguém,
elas assumem. Mas para conquistar as mulheres da Guiné, você tem
que ficar indo, indo, indo durante um mês, por exemplo, sem rolar
beijo. Elas podem até querer ficar com você, mas não dizem.
Todas
as impressões relatadas por Lassana Danfá foram um misto de
culturas continentais, temperadas pela visão adquirida no curso de
psicologia. Agora, o guineense tem o desejo de retornar ao seu
continente materno e andar pelos países africanos ajudando os
necessitados. Algo que ele destacou como virtude da sua terra é a
solidariedade entre as pessoas.
— Hoje
eu ando pelo Recife e não cumprimento mais as pessoas. Eu moro há
dois anos em um prédio e não conheço ninguém. Isso é incrível.
Isso, de forma negativa, eu acabo introjetando. Tenho medo de um dia
voltar à Guiné e não ter mais esse sentimento de fraternidade. Sei
que essas atitudes menos fraternas já estão chegando à Guiné.
— Lá,
quando eu andava pelas ruas, eu cumprimentava as pessoas, mesmo as
desconhecidas. É um costume nosso. Uma pessoa com condições
financeiras pagaria os estudos dos filhos e dos sobrinhos. Todos se
ajudam. Essa é a nossa virtude marcante, a solidariedade. Dizem que
a sociedade africana é pobre, mas na verdade, ela tem muita riqueza
cultural e financeira. Tem guerra, alguns lugares passam fome sim,
não tem como negar. Mas as pessoas se ajudam. O que salva toda a
sociedade africana é essa solidariedade.
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