Adelaide
Uma verdade incompleta foi o
que nos mostraram ao nascermos. Os olhos enlameados de sangue, as luvas da
parteira, que nos disfarçam a real natureza do toque humano, que é calor. A dor
prematura de perder nossa mãe, sem alternativa, sem misericórdia, uma realidade
trágica. É assim que certos mundos recepcionam certas pessoas, com foiçadas.
Adelaide se foi, sem que lhe balbuciasse “mãe”, para lhe dar um mínimo de
alegria. Adelaide era seu nome, que ficou para trás, no passado inconsciente.
Virei na esquina, um senhor
encostado ao poste, cigarro à mão, tragadas sucessivas e inconsequentes. Bigode
farto, ele não interagiu, jogou a piola no chão, amassou com a ponta do pé e
tomou o bonde. Minhas mãos trêmulas sugeriam alguma química entre ele e eu. Não
sei, o bonde se foi, as luzes da cidade foram se apagando, me resguardei.
Senhores, senhoras, não me
digam a verdade, porque ela é vossa e de cada um de nós. Consumo subjetivo das
parcelas do mundo.
Cama forrada, papéis de
confeito pelo quarto escuro, uma camisinha. Brigite desceu ao meu flat, bateu à
porta, emburrada, mandou baixar o som. Foda-se, Brigite. Subiu a vizinha, saia
no tornozelo, cheia de pudor, encontrou o filho remexendo sua carteira e
encheu-lhe de porrada. Sem clemência, Brigite jogou metade do pacote de feijão
no chão (ouvi os grãos caírem sob o teto do flat). “Ajoelha, malcriado!”. O
menino não dava um pio, apenas gemendo de dor, sua mágoa eterna contra a mãe
megera. O marido pelo mundo.
Adelaide, Adelaide: sussurrava,
alguém, no meu ouvido. Acordei com o rosto todo amassado pelo lençol. Na rua,
cães latiam para as ratazanas que passeavam rentes ao meio-fio. O silêncio
entrecortado pelo motor da fábrica, ao longe. No banheiro, o chuveiro velho
gotejava. Os surtos de energia elétrica faziam a geladeira zumbir de instante
em instante. Uma mão gelada tocou meu ombro firmemente. Seria Adelaide?
Mãe de Deus. As crianças
jogavam bola na rua. O carro passou por cima de todas, com violência, sangue na
pista, mães beijando o asfalto escarlate. Fiz uma foto e mandei para o jornal.
Lágrimas e sangue, gritos pelo crepúsculo, a bola estourada nas mãos de um
mendigo risonho. Passa alguém com violão nas costas, o dono do bar abaixa a
porta de esteira. Meu coração estilhaça, a respiração sufoca, o peito congela,
aperta, quem delas seria Adelaide?
Samuel comeu um prato de fava,
o suor descendo sobre a testa, depois de um dia de trabalho exaustivo. Pagou a
comida, saiu pela rua, um cigarro atrás do outro. Adelaide seguia pelo outro
lado da rua, correndo da polícia. Em um beco, Samuel a pegou à força. Mão forte
no queixo, calcinha rasgada, penetração raivosa, urticante, pênis percorrido
por veias grossas, pau dentro, pau fora, Adelaide desfaleceu e no beco ficou
por nove meses, com a vagina em carne viva. A vida cuidou do resto. Deu cabo de
Adelaide e luz a mim, que nasci errante.
Comentários
Postar um comentário