Quando a alma envelhece sozinha



Os cães danados latiam entre si ao longo da rua deserta. Localizada entre muros altos de empresas e residências, aquela rua vivia escondida por trás da estrada principal, não havia corrente de vento, passagem de transeuntes, nem comércio. As casas haviam sido pintadas há pouco tempo, para o fim do ano. Dona Gilda sentada na porta de casa, empurrava a cadeira de balanço com os pés, enquanto tricotava. Os cabelos bem amarrados a um coque deixavam alguns poucos fios para fora do penteado sóbrio. A pele bastante queimada pelo sol, pequenas rugas e pés de galinha em volta dos olhos clareados pela idade. Murmurava uma oração de vez em quando, chamava pelos cachorros, pegava a vassoura e deitava fora a poeira da casa.

Dona Gilda morava sozinha desde 2005, quando o marido faleceu de infarto. Ainda dormindo, ele parou de respirar. Dona Gilda sentiu o exato momento em que o coração parou. Num ato simultâneo, seus olhos começaram a chorar, a garganta soluçou. Ela estava pronta para o acontecimento já havia dez anos e, simplesmente, a morte levou Antônio embora. Os filhos, pelo mundo, vieram para o velório, mas não derramaram muita lágrima. Sabidos de que dona Gilda viveria os próximos anos em paz, não moveram uma palha para dar suporte ao futuro da mãe agora viúva.

Dona Gilda não se importou. No dia seguinte, juntou as roupas do defunto num saco de lixo preto, pediu que um menino da comunidade levasse ao asilo. Na época, já tinha 75 anos e não fizera planos. Sabia que perderia Antônio mais dia, menos dia, mas não fez reserva de dinheiro, nem reformou a casa, nem convidou solteirona para dividir despesas. Com um salário mínimo, achou que poderia viver os próximos anos, que seriam os últimos. Sempre os últimos.

Certo dia, no meio da madrugada, dona Gilda levantou-se aparentemente sem motivo. Remexeu as panelas na cozinha, pôs uma xícara de café meio morno e sentou na cadeira de balanço um instante. Nenhum vivente passava pela rua. Ouvia-se apenas o latido dos cães por detrás dos muros e o canto dos galos, anunciando a vinda da aurora. Dona Gilda costumava se levantar às sete da manhã, mas nesta madrugada o sono se esgotou.

A senhora saiu de casa, caminhou até a beira da estrada e ficou parada no escuro total. Vez por outra, um carro passava e iluminava dona Gilda, vestida de velha, com um xale cobrindo a longa camisola, um pano amarrado na cabeça. Murmurando uma reza breve, ela começou a fazer sinal de carona quando os carros passavam. Um caminhão de reboque decidiu parar. Um homem de 30 anos perguntou para onde a senhora seguia. Ela pediu que ele seguisse com ela, que ela indicaria o ponto de parada. Sem muito entender, o homem fez o que ela disse. A idosa não disse qualquer palavra durante o percurso. Dez minutos depois, dona Gilda pediu para descer, no ponto onde a estrada cortava um canavial.

Na beira da estrada, ela ficou parada por uma hora. O sol já subia lentamente, deixando o céu em tons de rosa e azul, com nuvens cirrus entrecortadas de raios levemente dourados. A velha se abraçava para afastar o frio, mas não conseguia evitar de bater os dentes. Sua alma estava ali, comandando o corpo. O que dona Gilda procurava não tinha nome. Um caminhão passou em alta velocidade e fez com que ela se desequilibrasse, caindo no chão e se descompondo toda. O coque se desfez, as mãos macias se encheram de poeira, com um leve arranhão na palma. Dona Gilda levantou-se e começou a caminhar na direção de casa. Ela Gilda faleceu caminhando, sem sentir qualquer dor. Continuou caminhando, mesmo morta, mesmo só, mesmo equivocada. Dona Gilda nunca mais voltou para casa e nem deram pela falta dela.

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