Dos cabezas que en realidad son una


O senhor gordo colocou a agulha no vinil, uma radiola velha e empoeirada no fundo da barraca. Tocava um tango antigo, certamente Carlos Gardel, Por Una Cabeza. Não confundiria essa música. O som do violino cortou o vento, perfurou meus ouvidos com a força de um mar represado. Aquela água salgada, com sua beleza desmedida, esconde sua personalidade durante a noite, mas jamais repousa, as ondas se chocando contra mim. Vasto, tenaz, aquele mar era o som do violino, era alguém que não estava ali, com todo o seu amor represado.

Meus óculos redondos, de bronze, sobre o balcão, olhavam para mim, me criticando, meu reflexo nas lentes límpidas como uma consciência. Eu bebia um copo de café fraco e fumava meu cigarro, meio distraído. Os ônibus iam e vinham, no Cais de Santa Rita, transportando rostos estranhos. Os cães jogados pelo terraço do terminal curtiam o tempo, gastando as horas enquanto se banhavam lambendo os pelos. Eles estavam certos.

Passo a vista, numa panorâmica, por todo o cais. Os bares tocando brega, maltrapilhos, mesas de ferro, uma mulher com vestido vermelho vulgar, um copo de cerveja pela metade, ela olhava para o nada. Alguns senhores sentados nos bancos, esperando o coletivo ou, quem sabe, a morte. Mais distante, junto ao muro dos galpões, os gatos passeavam, brincavam com as folhas secas, passavam pela brecha da grade, sempre solitários e, por isso, livres.

Eis que avisto Sílvia.

Roupas coloridas e folgadas, cabelo intencionalmente desarrumado, dando à sua beleza um frescor ocasional. Não tive tempo de ver se ela tinha descido do ônibus ou se veio caminhando pela calçada na margem do rio. Ela se agachou para acariciar uma cadela que descansava sozinha. O animal fechou os olhos, eriçou as orelhas, numa expressão de muito prazer, as mãos dela alisavam e brincavam com os pelos selvagens da cadela. Ela ria silenciosamente, o corpo pequeno, tencionado, pele branca um pouco pálida, magra, de uma beleza radiante, apesar dela ter um jeito contido. De quem ri para dentro, quando não está à vontade. Os aparelhos nos dentes lhe dificultavam o sorriso, mas ela ria fácil e, quando enrubescia, era ainda mais bela. Os cabelos cacheados, o nuance entre ruivo e castanho, eram uma natureza à parte, porque acentuavam aquele rosto suave.

Ela não tinha me visto ainda. Deixei dois reais no balcão e fui ao seu encontro. Os olhos dela eram nebulosos de pensamentos, mas diáfanos de tanta vida. Ela pegou na gola da minha camisa, puxou devagar e com força, num impulso. Senti seu suor tocar meu pescoço, quando ela deslizou seus dedos em mim. Sua boca delicada encostou na minha e seus lábios acompanharam os meus, numa dança do ventre. Fechei meus olhos e me deixei levar. Um sabor singular de café, de água gelada, sua língua se misturando à minha. Foi como correr na chuva, como mergulhar no gelo, cair numa corredeira. Seu beijo era uma delícia.

Quando nos afastamos, ela deu um salto para trás, arregalou os olhos com candura e abriu um enorme sorriso branco radioso.

- Estás fazendo o que por aqui?
- De passagem, fazendo hora, acho que vou na livraria, respondi.
- Você está tão linda, emendei, no arranque que tive quando meus olhos se cruzaram com os dela.
- Obrigada, disse ela, corando completamente e olhando para o chão, para a cadela, para os lados. Ela não me encarou, apesar dos meus olhos procurarem os dela, como um caçador persegue a caça. Curti a beleza dela naquele momento de silêncio.

Sílvia havia me conhecido há pouco tempo, ela tinha uma aparência ingênua, mas eu sabia que ela já havia percorrido um longo e intenso caminho. Muito no começo, desisti da tentação de fazer jogos de sedução baratos. Não funcionaria com ela. Eu me sentia um peixe fora d'água, porque ela era mais intimista que os padrões.

Conversamos longamente, enquanto eu esgotava meu maço de cigarros. Durante vários instantes, eu tinha a impressão de que estávamos num filme. A luz do dia perfeitamente pálida, os transeuntes bem treinados para figurar, para simular uma realidade apurada. Não sei se estávamos num limbo, num lugar especial. Era o Cais de Santa Rita.

De repente, me veio um pensamento: Não querer assumir o ofício de jornalista na sua integridade me é uma postura cômoda e conveniente. Porque tenho gostos intelectuais, entre literatura e cinema, rejeito a realidade como e quando posso. Como alguém que trabalha no mesmo ambiente de seu amante e só pode lhe dar as mãos quando se colocam da porta para fora. Um casal que se ama sempre na penumbra, porque incomoda menos os olhos e pode se entregar aos prazeres da carne sem dar bola ao farol ético.

Jogo palavras aqui porque às vezes me some o eixo da vida. O prazer da leitura da vida, que são os meus olhos de comer fotografia, fazem peso nos meus ombros e sou posto de joelhos, todo exposto à sorte das humilhações diárias. Sinto os olhos que me julgam como as pedras reservadas para Maria Madalena. Mesmo assim, prostituo minhas horas com prazer. Prossigo com o meu vampirismo.

Sílvia me vê falar tudo isso com olhos atentos, pontuando algumas partes. Ela tinha meus segredos todos. Recebia minhas palavras como quem estende a mão para guardar roupas passadas. Mas minhas roupas estavam todas sujas. Sílvia tinha um coração enorme. Ela retinha tudo no fundo dos olhos.

Num momento, ela derivou sua atenção de mim para a ilha do Recife Antigo. Olhou para lá por uns segundos, como se eu não estivesse mais ali. Ela tentava se furtar dos meus olhos, mas eu tinha tudo na mente, sabia que ela olhava pelas noites, o cigarro, o gosto acre que fica na boca, quando se sente o sol bater no corpo adormecido. Apertando os olhos, ela sentiu algumas rugas nascidas de tanto sorriso. Em sua pele, um perfume sutil que vivia muito rente, entre os pelos. Com o vento que veio daquele mar próximo ao cais, ela acabou tendo um calafrio.

- É o meu tique, eu sempre me arrepio, disse quase sem graça, sorrindo timidamente e desviando o olhar para baixo mais uma vez.

Eu e ela estávamos estéreis por conta de amores que tomaram o tempo e a alma. Por isso mesmo, tínhamos um compromisso. Aprendemos juntos: a intimidade existe quando o silêncio não incomoda.

Numas horas silenciosas, eu preferia me deleitar no perfume moreno dos seus cabelos. Depois disso, discutíamos sobre nossas filosofias:

Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?

[…]

Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. ”

(Tudo isso nos diz Fernando Pessoa. E sê tudo isso com enorme amor em nossos corações combalidos)

O tempo todo, trocávamos experiências e impressões do mundo. Trocávamos um extenuante prazer, que não se media com padrões. As notas do tango ainda soavam distantes, na barraca do senhor gordo. Eu era um caçador decadente, envolto nos braços carinhosos de Sílvia. Isso me trazia dignidade e prazer, trazia felicidade, afinal. Eu sentia meus músculos devassados pelo cansaço, de não saber mais correr pela savana. Mas aquela voz, aquela calma, aquele coração eram como uma corda que descia pelo poço, para me resgatar do torpor. Dos cabezas que en realidad son una.

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