Coração em chamas

Foto: Antonio Chac/Flickr

O amanhecer se tornou uma fábula de fogo. Quando o tempo vai transformando o frio da madrugada escura no calor implacável que vem com a aurora, surge em mim um sentimento novo, que vai corando meu corpo como um calafrio.

Não tem nada de mágico. Essa história tem fundo sexual e soa desinteressante para menores de 18 anos.

Mas há aqui dois animais, no melhor sentido da palavra. Ambos embolam-se na grama do deleite, não existe presa nem predador.

Cada um que use seus braços e genitálias, porque o sol vem inclemente.

Essa fábula existiu depois de uma longa diáspora.

Os dois animais, um casal, deixaram seu habitat, que era desordem em si, para viver no mundo hostil, onde até a aurora tem sabor de espelho. E não deixa ninguém em paz.
Não que a partida fosse consenso. Ele e ela se chocaram com seus mundos particulares. Há um estado de caos no coração de cada um. Pontos soltos, cadarços desamarrados que podem derruba-los na próxima esquina.

Ela tinha uma memória eloquente para a idade. Um coração enorme, que me provocava certo embaraço. Um rapaz minúsculo observando absorto os olhos da Esfinge. Havia uma reticência no seu olhar, apesar de haver uma pistola na sua mão voluptuosa. Que balas? Qual é o alvo? Quede impulso para puxar o gatilho?

Ele tinha um espírito apaixonado e diáfano. Situações sempre por fazer, por estar sempre derivando. Como se tudo fosse a primeira vez. E no entanto, havia abandonado rochas em busca de um caminho mais elevado. Mas era tudo cascalho, brita. Quem sabe o que pode acontecer?

No início da manhã, esses dois animais se cruzaram num eclipse de corpos. A luz do sol vai desvelando um desejo reprimido pelas circunstâncias. No jogo de lençóis e travesseiros, alguém põe o ouvido na porta do quarto. Ouve gemidos, suspiros impunes.

Como se eu estivesse numa viagem, alguém me atirasse do alto da ponte. O rio é largo, meus braços ganham cada vez mais força, tenho tudo aquilo por explorar. Aquele outro ser é o mar, me faz flutuar, mas tem vez que me sacode como ondas ferozes. Um náufrago qualquer? Tenho o sentimento bem guardado, a salvo de molhar.

Mas para que seguranças? Ser como flores, num jardim gelado? A luz do sol vem, mas para outras histórias de amor, que não sejam fotossínteses. A fábula de fogo vinha constantemente, como uma névoa espalhada pelo mundo. Pelas ruas, nos espaços entre as pessoas, estávamos lá, eu e ela, deitados, nos beijando no asfalto. Os cães me mordiam, meu corpo escarnecido. Quede o cerne? Quede a força própria? Estava lá adormecida, como um diamante envolto na estopa. As nuvens de sangue se espalhavam sobre o céu lilás. Em questão de minuto, o negro se transmutava na aquarela violenta. As ondas do mar se chocava nos arrecifes. Minha ferida suja de areia, eu já havia afugentado todos os fantasmas. Do chão, ela lançou os braços na minha nuca, enlaçando meu pescoço, para uma penetração mais forte. Como uma espada. E escorria pela areia, em cor espessa.
Eis um espasmo naquela hora, meu coração ensaiou de parar, procurei os lados, numa vertigem. Mas o mundo acontecia ali, naquela hora. Adormeci nos peitos dela. Longamente.

Eu era cego de nascença e não sabia. Agora, a metáfora era luz de sol, que esteve sempre comigo, porque o universo não nubla. Cada um carrega seu coração, passível da libertinagem. Com roupas rasgadas, subi a escadaria que dava para a orla. Tomei o primeiro ônibus, sentei no fundo. Pelo vidro traseiro, vi a montanha vermelha voltando para seu lugar.

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