Memórias de suor, penumbra e vertigem
As
pernas tremendo, a boca seca, as escadas do meu prédio não tinham
corrimão. Eu fui subindo os degraus lentamente, me apoiando de ombro
na parede. A frieza da noite era soberana a qualquer coisa, menos às
paredes do meu corpo em brasa. Eu ainda comentei: como faz calor, as
folhas das árvores nem se mexem. Mas, passada a minha vertigem, a
brisa estava lá, corrente, constante, agitando os galhos de um lado
para o outro. E meu coração, descompassado, mergulhado no perfume
de Leila.
Eu
nunca me acostumei a estar com o diabo no corpo. Geralmente é uma
surpresa, naquela noite não foi diferente. Aprendi a não perguntar
o perfume de ninguém. Cada pessoa tem seu cheiro, é sua construção,
sua arte particular. E Leila tinha um perfume característico,
peculiar, que me impregnava da cabeça aos pés com as rosas mais
extasiantes, enlevando meu pensamento para a loucura.
Eu
só escutei o barulho dos pneus do seu carro ferindo o calçamento
molhado. De portão fechado, fiquei parado na garagem do prédio
alguns minutos, ofegando. Fazia tempo que não praticava exercícios
de qualquer ordem, nem mesmo sexual. Fazia tempo que não me jogava
nos peitos de alguém. Não com fervor. E mesmo a contagem do tempo
era novidade. Aqueles meses loucos, tantos, cada dia como uma página
irrevogável daquela história minha.
Sentei-me
no topo da ladeirinha que dava para a garagem no térreo do meu
prédio. Nos prédios vizinhos, alguns quartos ainda permaneciam
acesos. Já passava das onze da noite. Instintivamente, deitei no
chão sujo da garagem, curtindo aquele momento solitário. Na minha
cabeça, eu via os pneus do carro de Leila rodarem pela estrada, se
afastando de mim a cada segundo. Seus olhos atentos para a estrada,
aqueles olhos pueris que se encontravam com os meus por acaso, o dia
inteiro, por isso meu aspecto frouxo e delirante ainda talhado na sua
retina. Ocorria como a linha, no momento da fisgada. Parávamos nos
dois segundos mais eternos e nos dávamos as mãos, nos beijávamos
tocando nossos lábios, nossos rostos.
Leila
tinha um jeito juvenil, ao mesmo tempo em que dizia coisas de
política, do mundo das mulheres, de astrologia. Enrubescia com os
meus deboches, se desmanchava com as minhas ternuras, eu sentia seu
coração formigar nas minhas investidas fogosas. Durante horas, num
cinema antigo da cidade, minhas mãos passearam por suas pernas, sob
o tecido fino de uma saia longa. Minhas mãos grandes tocavam suas
coxas, meus dedos longos premindo cada centímetro daquela pele
gostosa, enquanto ela acariciava minhas costas por debaixo da camisa,
as unhas longas arranhando minha pele.
Eu
observava o teto branco da garagem, o olhar distante numa cidade
satélite dessas em volta do Recife, para onde Leila iria, talvez. Ou
uma casa no alto do morro, um apartamento solitário, luz acesa na
madrugada. Uma cama desforrada esperava aquele corpo magro, cabelos
ruivos a se espraiar pelo travesseiro, a prateleira cheia de livros e
papéis contornando a cama de casal. Roupas amontoadas, um tapete
vermelho no chão do quarto, a bolsa em cima da escrivaninha. A carne
trêmula iniciando um repouso incerto, enquanto as pálpebras
guardavam uma memória perplexa, mal resolvida como uma equação. No
bom sentido, claro.
Entre
as suas mãos e a direção do carro, escorria demasiado suor, assim
que desci do seu carro, lá pelas tantas, numa rua escura e afastada
do centro. Eu imaginava, enquanto revirava a língua na boca,
buscando o gosto daquele beijo. Eu era um completo desconhecido. Mil
possibilidades torpedeavam sua consciência, como um vórtice. Que
espécie de caso estaríamos vivendo? Melhor não racionalizar.
Entrei no meu quarto e atirei minha camisa junto ao travesseiro, pra
mistura aquele perfume ao meu odor usual.
Do
lado de fora, o tempo vivia um momento sem muita resolução, entre
chuva, frio e a lua com a peleja da sua luz por entre as nuvens
densas. No meio de toda a distração, o bip do meu celular trouxe a
mensagem dela, avisando que havia chegado. Mandei um beijo de volta e
retornei à minha conspiração.
Mas
esses momentos de consideração, mais que maconha, me levavam para
uma dimensão especialmente minha. Esse meu mundo excêntrico,
animado, voluptuoso. Leila estava lá para mim, como uma extensão de
mim. Como a parte boa de mim. Naquele momento no carro, nossos corpos
se uniram sob a luz alaranjada do poste e a penumbra. Nosso beijo
morno, minha boca e os mamilos dela, todos os toques em nossos
corpos, era uma colisão de mentes distantes, vivendo momentos
diversos, aliviando prantos extenuantes, acalentando vozes que
ecoavam a esmo, dando morada a sentimentos de desejo e saudade.
Como
o prazer verdadeiro que a areia da praia oferece para os afogados. No
meio do ofício de estropiar, que todos esses prédios de concreto
exalam, num instante em que o relógio me colocou pra fora da rotina,
eu estava no cinema, entre rostos estranhos. Minha derme tocou na
dela e duas histórias se fundiram naquele atrito, quebrando a
calmaria do rumo natural. Embebido na minha camisa, seu perfume me
botou para dormir.
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