Durante meus dias de recesso



O meu recesso durou do tempo que conheci Virgínia até sua viagem para bem longe. Alguns meses, ao todo, numa sinuosa caminhada por um parque de diversões abandonado, afastado da civilização. Ocorreram eventos muito específicos para sublimar meu pensamento, tal qual um cigarro após o outro, goles apurados de uísque e pegadas de lança-perfume. Andei sensivelmente dopado, pisando nos buracos da cidade sem torcer o tornozelo, sem encarar os rostos, sem gaguejar ou hesitar. Virgínia me conheceu numa noite diáfana, entre goles de vodca pura com gelo e partiu me deixando desnorteado.

Nesse meio tempo, aprendi a apurar a mágoa e a bonança no meu coração, como coisa inventada pelos outros. O peito é um balde vazio, que se enche do que for apropriado. Levei revezes das águas do mar bravio, aquele mar louco, se esbarra contra os arrecifes com força de destruição. Aquele mar que é a soleira do horizonte vasto, que não me responde as perguntas me deixando hesitar por horas no cais do porto. Por todos os motivos, desejo flanar pelo Recife quente e concreto, porque sigo duvidoso. Muito duvidoso, capaz de tirar minha vida a qualquer instante ou de sublimá-la num discurso inflamado na praça, atirando moedas a quem quer que seja, me esvaindo em lágrimas, em sangue, em lama, em pólvora e gasolina. Ouço o vento estalar na minha pele.

Caminhei por todas as fronteiras da cidade, onde o lixo se encontra com os rios fétidos, os casebres se amontoam criando vielas, a fome se instala nos corações arrancando qualquer dignidade. Vejo olhos de um preto de difuso, aquela escuridão que não encontrou ainda a pureza do discernimento, da noção de existência. E esse é o maior dos problemas, porque a sensação de injustiça é que mata. Ela é que revela o ser humano para a violência. Nesses lugares eu só encontrei alimento para a alma, mas não para o pensamento e o coração reticentes. Dei passagem a toda sorte de marginais, parado no terminal de ônibus, avistando os cachorros rabugentos pela rua, as senhoras dando banho nas crianças encardidas, barrigudas e peladas. O barro carcomia as casas, a fumaça dos coletivos carcomia as pessoas.

Foi nesse Recife que eu vivi os últimos meses, sem encontrar abrigo. Eu era mais um Joe Gould, sem teto, sem verdade resolvida e equacionada, com meus princípios guardados no portfólio, com meu segredo atado ao casaco puído, em uma cidade escaldante, os cabelos ensebados pela força dos dias de suor, dos longos trajetos iluminados pelo asfalto candente, os rostos ermos. Sempre ermos. Não havia uma curva de mulher que eu não olhasse, não havia momento que me afastasse da minha tara pelas as vulvas do mundo. Houve dias que desviei o caminho e sentei ao balcão dos desempregados, com cerveja vulgar. O isqueiro mais falhava que acendia, pus na ponta do cigarro e fumei até virar guimba, que passei para o mendigo na porta. O recesso já durava seis meses, sabe-se lá por onde ela andava, mas aquela calçada lá na frente, o prédio de três andares com azulejo, tinha seu nome escrito.

Nas noites da cidade, eu me deixei levar pelos morcegos para os arrabaldes mais desconhecidos, dos quais minha memória não preserva qualquer traço. E esse devaneio é o estado de um espírito doente, canceroso, evidentemente ultrapassado pela vida contemporânea. Em busca de respostas, em busca de alento, de uma mísera certeza que afiance minhas escolhas. Mas as lembranças deixadas naquele quarto na Zona Oeste jamais sairão da minha cabeça, com todo seu significado. A ventania noturna balançava as folhas compridas de bananeira, a alta mangueira deixava suas flores minúsculas caírem no estacionamento do prédio, sob as telhas de zinco nas vagas dos carros. A luz alaranjada que vinha do poste distante acertava o fundo do quarto, num recorte estranho. Tuane deitada na cama falava ao telefone, desnuda e esquecida de mim. Os aviões cortavam o céu completamente escuro, sem nuvens, sem lua. Meu corpo ainda prolongava os últimos instantes de prazer, com aquela lividez costumeira. Na ponta dos dedos, flamejava meio cigarro barato, deixando meus olhos dormentes.



Essa era canção do recesso, como os novos baianos, um violão plangente e uma voz ameninada, com letra visceral de versos psicodélicos, simples. Uma poesia deliberada, misturando as confusões da minha cabeça latino-americana, suas contradições, seus melindres e sua pujança espiritual desgovernada. Virgínia tomaria o avião dentro de algumas horas, sem que eu lhe dirija as melhores palavras. Mas houve poemas suficientes para encher um livro, houve transas maquinadas na robustez da minha volúpia, houve horas caetaneadas por toda orla de Boa Viagem, seguidas de uma aurora implacável. O sol atingia todos os lugares do mundo às sete da manhã, me deixando sem saída, sem estratégia, com um cão raivoso latindo dentro da minha cabeça. Quando o cão, o sol, os disparos, a fome, a intempérie e a falta de senso me morderam, todos juntos, eu resisti por alguns segundos, a tempo de desejar boa sorte. Ela me olhou nos olhos e subiu no ônibus.

Comentários

Postagens mais visitadas