Seção de encontros exóticos



O menino pedia ajuda como quem pede socorro. A voz dele, decaída pelo cansaço diário, parecia se arrastar perante nossos pés burgueses. Assim, com sua pobreza por dentro e por fora, ele convencia nosso coração da sua verdade. Umas mãos generosas ofereciam dinheiro e comida. Outras mãos, despreparadas ou até receosas, se fechavam sobre o colo para conter a vergonha da negativa. Os olhos de súplica me fuzilavam mais uma vez, para contorcer o metal de que somos feitos, aquele que brilha ou se deixa envergar para contagem da vida.

Aquele menino fez do jeito que a mulher gorda deveria ter feito. Mas a mulher gorda simplesmente pediu dois reais para voltar pra casa, com a cara cínica e dissimulada que carregamos diariamente. A cara que não precisa do outro. Você pede sem precisar, por malandragem. Uns, por excesso de boa vontade, ainda lhes davam uns trocados. Outros como eu, que se viam extorquidos pela pobreza de espírito, apenas respondiam “Não tenho nada, moça”, enquanto reviram as cédulas de dois reais aleatoriamente amassadas no bolso da calça.

Diariamente eu volto pra casa com esse gosto de necessidade na boca. Cada qual sentado no ônibus lotado ou agarrado ao corrimão, as bolsas arriadas nas costas, o sacolejar do trânsito vagaroso. São horas para ir e para voltar, que permanecemos num estado de inércia, um estado febril, onde nada é gestado daquele encontro de pessoas. As pontes estão quebradas, nossos encontros são trancos e abalroadas e, mesmo assim, ninguém se desculpa pelo descuido. Mantemos nossos rostos abaixados, seja para olhar o chão ou o celular. Caminhamos em direções opostas, mas nunca para nos descobrir.

É como se o cotidiano derretesse nossa atenção para com o outro, dissolvesse nosso ânimo para a alteridade. Entendo que a fugacidade da vida é muito mais concreta que nossos sonhos, o que nos mantêm unidos e para frente. Mas realmente perdeu-se a capacidade de espanto, a eloquência da felicidade, a veracidade da tristeza. Antes estava tudo ali, exposto, na cara. E havia um respeito pelas dimensões emocionais da nossa vida. Hora de casar, hora de ter filhos, primeira formatura, medo de assaltos, acidentes, receio pela velhice, assombros com sangue, desejos de viajar para a Europa.

Agora tudo é mais um misto midiático, imagético, de uma melancolia dissimulada em outros sentimentos. Porque, realmente, não dá tempo de sentir pena, não dá tempo de indignar, não dá tempo nem de ser feliz e curtir a euforia. Há sempre um segundo ato na agulha, é a metralhadora do imediatismo que lhe previne o trabalho no dia seguinte. Como a imagem é loquaz, as vozes perderam o sentido e nos passam como vertigem. Naquelas vozes que pedem, clama muito mais a imagem de dor e sofrimento envolta no contexto. E tudo passa assim como deslizamos o dedo na tela do celular.

Deitado, prestes a dormir, todas essas “imagens de engasgar” passam pela minha frente. Mas desenvolvi a capacidade de deglutir o ferro das calçadas e das pessoas. A noite passa ligeira, acordo ainda cansado e já olho o celular. É impossível desplugar dessa cadeia, dessa corrente, dessa neurose. A magia de olhar um dia, uma semana, um mês em perspectiva se esvai ao abrir a porta e o sol me incendiar a testa. No rosto dos transeuntes, eu creio plenamente, vozes trovejam no silêncio desse caos. É preciso pô-las fora.

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