Kafkian sunrise


Foi o meu primeiro sono tranquilo depois de vários dias. Até achei que dormiria cedo, mas a vontade de ouvir música me prendeu durante alguns minutos. Acordei sereno, ainda de madrugada. Só se ouvia o barulho dos ventiladores no apartamento, pássaros assoviando a chegada da aurora. Lembro que passei alguns segundos olhando a parede branca defronte da cama, sem pensar em nada. O sonho da noite passava algumas vezes, mas eu estava vacilante. Coração soturno, eu assumo. Mas os refluxos da angústia não me atordoavam mais.

A água do chuveiro se espalhou pelo piso do boxe, só que eu não tinha coragem de entrar. A água quente não funcionava há meses. Prestando atenção a tantos detalhes, eu queria me ater à realidade material, respirar fundo depois de tantos meses de relacionamento. Fiz hesitações durante a escovação dos dentes, a profilaxia diária. Mergulhava nos meus próprios olhos enquanto penteava os cabelos. Demorei mais que o normal para encontrar a chave e destrancar a porta. Quando saí na rua, entendi que havia me decidido, porque não senti falta de olhar as redes sociais. Não adiantava mais remoer. Tocava um jazz qualquer na rádio, me concentrei para distinguir os instrumentos.

Os raios do sol foram cortando timidamente as muitas nuvens que se espalhavam pelo céu do Recife, uma coloração de amarelo queimado e branco. Parecia que ia chover nesse dia, mas o Recife era sempre assim. Sol e chuva. Era bonito ver a cidade crescer, ir ganhando forma, os carros e pessoas surgindo nas ruas. Gente caminhando com os cachorros, alguns senhores debruçados na varanda, um vento frio antecipava o dia de calor que viria. 

A cidade estava em prenúncio de revoltas pelo aumento da passagem de ônibus, o metrô acabara de iniciar um vagão exclusivo para isolar mulheres de abusadores, os presídios em burburinho, em constantes ameaças de motins. Havia um clima de insegurança muito forte, de assaltos a ônibus, nas ruas desertas. As redes sociais povoadas de relatos de roubos e furtos cotidianamente. As costas do governo estavam verdadeiramente esquentadas tanto no Facebook quanto nos jornais. 

Ao mesmo tempo, a insatisfação com as medidas do governo-tampão, pós-golpe, ganhava as ruas em pixações, nas conversas ao pé do ouvido, nas publicações da web. Por último, a queda de braço entre conservadores e simpatizantes de esquerda, que o valha em brigas étnicas, sociais, de gênero, enchia páginas e páginas das redes todas, vídeos, memes, posts de desabafo. As mesmas pessoas expressando as mesmas opiniões, sem que alguém se ouça.

Eu talvez fosse como um Roberto Carlos que passou ao largo da revolução contra a ditadura, com a sua poesia romântica, o cancioneiro inspirado em amores contrariados. Frequentemente, eu me abstive de opinar. Minha imaginação estava um pouco reticente, talvez se recusando a reconstituir a conversa da noite anterior. Já quase de frente à padaria, prestes a tomar um café, subidamente eu descuidei e ouvi como se estivesse lá, o barulho do portão batendo. O Uber aguardava na porta do meu prédio, o motor arrancou de imediato, um carro relativamente novo. Isso ontem à noite, seu cheiro espalhado na minha sala. Eu a deixei partir e recriminava minha mente por estar sentindo alívio agora.

Mas o que me faltava? Foi com essa pergunta que eu adormeci. Até os eventos que vivemos juntos nos últimos meses agora estavam fracos, me retornavam como conta-gotas. Desliguei a internet, peguei o violão e dedilhei duas músicas de Caetano Veloso. Para mim, cantar uma canção seria mais intenso do que ouvi-la. Interpretar uma canção é revivê-la. Os acordes soaram fáceis no início da madrugada. Agora pela manhã, eram apenas memórias. O ciclo do mar revezava calmaria e ressaca. Eu me conhecia melhor e só isso já compensava a caminhada pelo deserto. Debruçado no balcão, eu observava a garçonete despejar o café na xícara. Era o cheiro que eu mais gostava, no fim das contas.

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