Uma hora de músicas românticas no rádio
A luz do banheiro, amarelada
feito lâmpada de candeeiro, dourava nossa pele arrepiada pelo frio daquela
noite chuvosa. Queria tocar todo o tempo o teu corpo pequeno, lânguido, marcado
pelo sol, com aquele cheiro bom da maresia. Você tinha os olhos fatigados da
água salgada, do calor que emana da areia branca da praia de Itamaracá. Você
estava ali singela, olhando meu rosto queimado, meu cabelo desarrumado, eu que
havia raspado a cabeça há pouco tempo, estava ali com uma cara de menino
sarará, um sorriso malfeito.
Liguei o chuveiro de súbito, escorreu
um fio d’água que logo se alargou com aquele gosto que me lembra a praia. Dei
uns saltos pra passar o frio, você sorriu, achou graça do meu pinote. Sem que
você antecipasse, te puxei pra debaixo do chuveiro, você toda aflita, se
afogando no fluxo da água, passando a mão no rosto, me abraçou enquanto
respirava com dificuldade. O frio passou.
Éramos tão meninos naquela época.
Tinha uma energia boa na nossa companhia, fazíamos tudo do mesmo jeito, como se
tivéssemos sido criados na mesma casa, recebendo a mesma educação. Falar de
boca cheia, arrotar, matar o outro de cócegas, conversar de manhã cedo sem ter
escovado os dentes, ouvir música alta varando a madrugada. E tudo isso se
perdeu no tempo. Não sei bem quando foi a ruptura. Não sei bem o que sustentou
a minha determinação em pôr fim a esse relacionamento. Uma suposta satisfação
em assumir a culpa? Orgulho de atitudes canalhas? A chance passou, sobraram só
farelos do que foi doce. E já não eram suficientes para matar a fome.
Me tornei aquilo que eu repudiara
tanto. Uma pessoa de nariz empinado. Mas bem embaixo do meu nariz, caminhando
pelas ruas do Recife, estão todas aquelas memórias. Como uma toalha de
cozinha feita com humildade. Alguém só queria me presentear com o melhor que
sabia fazer. A ternura do pano e a delicadeza da gravura, frutas e flores. E eu achei que era pouco, que eu tinha nascido pra a Europa, pra a
distinção, pra a erudição, pra o intelecto e a boemia sem fim, pra os grandes
dilemas da humanidade, pra relacionamentos complexos de pessoas que nasceram
para dominar a sociedade. Não mesmo.
Assistindo ao filme Revolutionary Road, me compadeci do
sonho simples de April, uma mulher – atriz de teatro frustrada – que desejou levar sua
família americana para viver em Paris, no anseio de encontrar alguma chama que
lhe trouxesse de volta o vigor. “Não precisava ser Paris. Bastava sair daqui e
encontrar algum lugar onde voltássemos a viver de verdade”. E depois de uma
briga bestial com o ganancioso marido Frank – em ascensão no escritório em que
trabalhava para sustentar a família – a mulher apenas se resignou, jogou para
debaixo do tapete os cacos daquele sonho formidável. “Tudo bem, Frank. Você
está certo”, ela apenas murmurou. O filme pôs o espelho na minha frente: você
se dobrou, Mário. Você está fazendo pouco de si mesmo.
As paisagens familiares continuam
lá, acenando para mim silenciosamente. Recife e Olinda anoitecem com agitação,
o terminal integrado abarrotado de gente, o metrô indo e vindo, aquelas pessoas
esperam na parada de ônibus, comendo pipoca, ouvindo música no fone de ouvido.
Essa imagem martela na minha mente, com um rosto brilhando no meio da multidão.
Falta amor no Recife.
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