Um objeto no meio do caos: o quarto


Doutor, eu me sinto um peixe fora d’água. Me sinto mais um no meio da multidão. É complicado explicar, mas o senhor deve entender... eu sinto indiferença, sabe? Pra mim tanto faz, se é bacon ou queijo, chuva ou sol, Recife ou Petrolina, beija ou não beija. É porque eu sinto tudo fora de ordem aqui, como se não houvesse uma ordem, exatamente, tudo genérico, estéril. A primeira sensação é o peso do sono mal dormido, a sensação de que um caminhão passou por cima de mim e o dia já começa errado. O corpo moído, febril, os olhos ardendo, um cansaço, uma dificuldade de respirar mesmo. E bate aquele arrependimento de não ter dormido mais cedo na noite anterior.

Nem uso muitas cobertas na cama, só uma fronha. Quando acordo, minha cama já está completamente desforrada, porque me mexo muito dormindo. O pescoço com um leve desconforto, o mal cheiro do colchão velho e duro, parece que eu durmo numa tábua seca, doutor. O celular já alarmou umas trezentas vezes, eu já tenho colocado em modo “soneca” umas duzentas e noventa e nove vezes, aquele barulho infernal cortando o meu sono bruscamente, atrapalhando os sonhos intranquilos, os pensamentos fantasiosos, quando eu já acordado, sonolento. Uma percepção odiosa, aquela vontade de voltar para o buraco e o mundo me arrastando para a superfície, me tragando para a sociedade, para a convivência, para o padrão.

Desligo o alarme do celular, de uma vez por todas, e começo a olhar as redes sociais. O Instagram está cheio de postagens de “bom dia”, seja com expressões preguiçosas ou animadoras, de gente indo trabalhar, estudar ou até mesmo nada fazer. Eu abro a câmera, ensaio fazer um selfie desses com a cara lerda de quem desperta, mas o cabelo está amassado, o rosto todo inchado do sono... melhor não. Começo a ver as postagens no Facebook, coisas de ontem, coisas de hoje cedo, lembranças de três anos atrás de todas as pessoas. Revejo as minhas lembranças do Facebook, percebo que não me agrado da minha aparência no passado, percebo que sou feliz de me tornar o que sou hoje, embora não saiba dizer bem o que me tornei.

As ideias não estão muito claras na cabeça, se devo fazer um post de “bom dia”, soltar uma indireta, compartilhar uma música sobre meu estado de espírito, replicar lembranças dos anos passados. Posto qualquer coisa, continuo vendo as postagens dos outros, enrolando, os olhos vidrados na tela. Aos poucos, o sono vai indo embora, vou me restabelecendo. Os olhos ainda estão pesados de sono, sinto-os bem inchados. A voz está grossa como uma distorção, nem parece eu falando. Costumo cantar qualquer coisa, pra aproveitar que tenho a voz grave. Parece Arnaldo Antunes, sei lá. Ainda nem levantei e já são 8:10 da manhã.

O quarto está totalmente claro. A cortina azul não dá conta da claridade do sol que invade o meu quarto pela janela e torna aquela experiência mais indigna do que parece. Minha cama de casal, tipo box, toma metade do cômodo sozinha. Um colchão de solteiro dobrado ao meio fica na borda próximo à abertura da janela, meu violão velho e a guitarra posta na capa ficam bem ao lado, encostados na escrivaninha. Não há muito espaço pra chegar até a janela e abrir. Frequentemente a janela fica fechada, por preguiça mesmo de se esgueirar até lá. O ar abafado piora sensivelmente a situação, doutor. Mas lhe conto da forma como acontece, estou sendo sincero.

A escrivaninha tem uma pilha de livros, revistas, cabides, pequenos objetos perdidos, como pilhas, cortador de unha, tampas de canetas, fones de ouvido antigos, meu e-book Kindle dentro da caixa preta, uma régua, uma camiseta amassada, escovas de cabelo e um pente, entre outras coisas. Essa escrivaninha é daquele tipo com uma prancha corrediça para teclado de computador e, nessa prancha, mais bagunça. Minha monografia, ainda não relida depois da apresentação, o livro que Cecília me devolvera junto com a carta que ela me escreveu, umas contas vencidas. Abaixo, a parte mais organizada, a minha coleção de revistas Cult, Continente, Trema, Bravo e Piauí. Tem também uns discos que meu irmão não quis, outros que ele me trouxe de presente, um DVD do Metallica, um DVD do Scorpions todo arranhado e um DVD duplo do Slipknot.

Assim que você entra no quarto, do lado direito fica a escrivaninha, do lado esquerdo uma cômoda marrom-escuro, cor de tabaco, eu diria. É outro foco de desarrumação. Estão lá por cima da cômoda uma infinidade de perfumes novos, velhos, alguns com frascos vazios, xampus, condicionadores, desodorante, uma caixa de remédio com vários comprimidos vencidos, bloquinhos de nota, mais canetas, cartões, minha carteira, uma caixa cheia de camisinhas do governo, caixas de celulares antigos e mais uns papéis empilhados na quina da parede. As gavetas também são uma desordem sem fim: cuecas na primeira gaveta, bermudas e calças na segunda, camisas na terceira e roupas de cama e banho nas últimas duas. Essa ordem, apesar de idealmente definida, não é fiel na prática.

No alto, acima da cômoda, um relógio de parede vermelho que passou metade de sua vida útil parado. Comprei pilha pra ele na semana passada e ainda não me acostumei a usá-lo para me informar das horas. Acordo desnorteado, me dou conta de todas essas coisas e, para mim, já é abusivo. Tem poeira sobre a cama, o chão está sujo, tem roupas amontoadas sobre o cesto, sobre a caixa de som da guitarra, sobre a cadeira da escrivaninha. Roupas limpas, usadas, sujas, de todo tipo, fardas, calças, roupas de sair. Enquanto reluto para sair, ouço o barulho de um papagaio gritando na vizinhança, dos carros passando na rua. O apartamento está totalmente silencioso, todos já saíram para o trabalho, apenas meu irmão dorme no quarto dos fundos. O quarto dele é mais escuro que o meu, diga-se de passagem.

Já não é sem hora, depois de incontáveis contagens regressivas, ponho os pés pra fora da cama – primeiro o pé direito. Vou descalço, sinto a poeira encher meus pés. A porta branca, com a pintura descascada, a chave remoída, as dobradiças rangendo irritantemente. O apartamento está igualmente sujo, não se varre desde o mês passado. No entanto, está notadamente mais arejado que o quarto. É como se eu me desvencilhasse das ferragens do avião que despencou durante a madrugada e caminhasse pelas ruas barrentas das cercanias do deserto. Tomo um copo de leite maltado, me observo longamente no espelho, faço as coisas sem pressa alguma, apesar do atraso gritante.

Meu coração sente o peso da angústia que oprime tantas pessoas. Penso no ônibus, no calor extenuante pelas ruas, aqueles odores misturados, as expressões vazias lançadas a esmo, janela afora. Penso na quantidade excessiva de trabalho que se precipita pelo caminho da minha proatividade. Tem dias que jogo água no rosto, pra dar alguma coragem. Tem dias que vou direto para o chuveiro e abro o fluxo de água no máximo. Tem dias que vejo o chuveiro despejar aquela água sem fim e apenas observo, não consigo me molhar e continuar o ritual. Será que dá pra chegar um pouco mais tarde? Se eu pegar um Uber hoje, vou comprometer o meu orçamento? Enfim, que se foda. Eu vou e faço. Esqueço toda aquela bagunça de porta trancada e ponho os pés na rua. Já pela rua, realmente esqueço da confusão do quarto, me tranquilizo. É apenas um paliativo, não é, doutor? Mas o que fazer?

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