Detrás dos olhos atônitos


Mário fitava detidamente a xícara de café, sem reparar nada em volta. Era mais um dia chuvoso no Recife, porém nesse instante caía apenas uma neblina. A sutileza da fumaça que emergia do café contrastava com a imagem do atropelamento que ele presenciara alguns minutos antes, na Avenida Conde da Boa Vista. Mesmo sem ter tido nada a ver com o caso, Mário tinha dificuldades em não se culpar pelo acontecido.

Ele esperava o ônibus, o clima abafado estressava as pessoas, aquelas paradas elevadas e compridas dificultavam a passagem dos transeuntes. Mesmo assim, Mário pensava que aquele era um dia agradável para pensar sobre a vida, talvez iniciar um ciclo de cuidado com a saúde, a ideia de escrever um livro, coisas assim. Estava inspirado, apesar do céu acinzentado.

A uns cinco metros, uma senhora dessas maçantes discutia com um rapaz que insistia em fumar no meio daquele pequeno aglomerado. Não demorou muito para que se elevassem os ânimos, o tom de voz, a atenção das pessoas se direcionasse para aquele incidente sacal.

“Minha senhora, eu estou num lugar público e aberto. Tenho direito de fumar aqui”, tentava explicar o rapaz, magro, camisa preta, calça jeans ligada nas pernas finas, de cabelos estirados, unhas pintadas de preto, um crachá de atendente de telemarketing no peito.

“Você vai sair daqui agora. Eu estou passando mal, não vou aceitar isso. É um absurdo, a fumaça está me sufocando, seu estúpido”, alterava a mulher, medindo desproporcionalmente as diferenças entre ela e o rapaz.

Não demorou muito para que, sem pensar, ela começasse a empurrá-lo. Ele tentava conter a mulher, mas era inútil, ela estava fora de si, talvez trouxesse consigo tormentos que não tinham nada a ver com a fumaça do cigarro: endividamento, traição do marido, fofocas pela vizinhança, maus agouros.

Um ônibus surgiu no horizonte da avenida, o motorista distraiu-se não sei com o que e, nesse momento, o destino de ambos – o ônibus e o rapaz – se encontraram fatalmente. Num empurrão desmedido, a mulher precipitou o rapaz para o meio da rua. Ainda cambaleante, ele quase permaneceu no elevado da parada, mas desequilibrou-se e caiu estirado com a cara no chão. Um corte no pau do nariz logo fez jorrar o sangue pelo rosto e ele, de supetão, levantou atônito, sem entender o que lhe atingiu. De costas para o ônibus, não percebeu quando todos gritaram ao mesmo tempo, não alertando-o sobre o impacto que se aproximava, mas pasmando pelo inevitável. A porrada lhe acertou em cheio, arremessando aquele corpo frágil dez metros a frente e quebrando uma quantidade insondável de ossos.

A mulher, que se digladiava no seu acesso de fúria, logo caiu em si e de uma forma fulminante, foi ao chão, desmaiada no elevado da parada de ônibus e alguém lhe amparou a queda. Aquele momento maquinal fez com que todos os presentes se esforçassem para compreender o acidente, mas foi inútil. O rapaz se contorceu alguns minutos e morreu de falência múltipla. O motorista, que freou bruscamente, estava totalmente pálido e ainda ensejou levantar-se para pedir socorro, mas ele mesmo é que teria de levar o acidentado até o hospital, se houvesse tempo. Não havia. A desgraça já estava feita. O rapaz morto, a senhora desmaiada. Um instante de aflição e logo acorreram os protestos pela responsabilidade daquela tragédia urbana.

“Meu Deus do céu. Aconteceu de novo”, exclamou uma vendedora ambulante.

“Foi essa velha que jogou o rapaz no meio do asfalto”, disparou um homem com pasta debaixo do braço. Umas pessoas observavam boquiabertas, talvez alguém já chamara a ambulância, os bombeiros. No fim daquele burburinho, um menino olhava no celular quanto tempo faltava para passar o ônibus para Casa Amarela.

Mário não esperou muito para conhecer o desfecho da história. Chocado, como muitos estavam, ele preferiu sair dali. Percorreu algumas ruas, estarrecido, sem pensar muito e logo topou com um café perto da universidade ali no centro.

Ele percebera atentamente o momento em que o rapaz deu o último suspiro e compadeceu-se. Sentiu correr um arrepio no seu corpo, como se tivesse visto o rosto da morte entre os transeuntes na parada de ônibus, acossando a velha a empurrar o rapaz mais e mais. Ele olhou os olhos dela, que canalizavam um ódio inexplicável.

“Como pode? Ela nem conhecia ele e vociferava daquele jeito, daquele jeito, meu Deus. Por que ela não saiu dali? Por que insistiu em vexar o pobre rapaz?”, pensava Mário, com uma terrível sensação de injustiça.

Entrou no café todo desajeitado, a porta de vidro foi e voltou várias vezes. Meteu-se na última mesa, no fundo do corredor. No caminho, pediu um café expresso ao garçom, rispidamente. Nesse ínterim entre o pedido e a entrega do café, o pensamento de Mário tomou-lhe de assalto como um turbilhão. Pôs-se no lugar do rapaz, criticou a velha, sentiu vontade de esganar a velha, recriminou o cigarro do rapaz, pensou em que diabos o motorista atentava, quem era a mãe do rapaz, o que tanto afligia aquela velha. Franzia o cenho, suava a testa, tamborilava os dedos na mesa, fechava os olhos para ceder a febre que lhe tomara o corpo.

Por fim, nessa sucessão de pensamentos e ideias, sentiu um medo profundo do acaso. Na mesma hora, ligou para a mãe e perguntou se estava tudo bem.

“Sim, meu filho. Está tudo bem. O que você tem? O que aconteceu?”, indagou Cibele, percebendo o frisson na voz trêmula de Mário.

“Nada, mãe. Nada. Só fiquei preocupado e quis saber da senhora. Foi só um pressentimento ruim”, alertou Mário.

“Meu filho, não se preocupe. Está tudo bem comigo, seu pai está aqui em casa fazendo um lanche. Está tudo em paz”, tranquilizou a mãe.

“Tudo bem, mãe. Eu te amo. Tchau. Beijo”, disse Mário e desligou sem ouvir a resposta.

Em casa, deitada no sofá, a Cibele pôs a mão no peito e sofreu um minuto pelo filho. De olhos fechados, fez umas preces a Deus e voltou a cochilar.

Mário pegou o café, que estava demasiado quente, e pôs dois sachês de açúcar. Mexeu um pouco com a colher de plástico e deixou repousar, para esfriar. A fumaça subia nitidamente, o que lhe chamara a atenção a ponto de deter-se por alguns segundos. “Nós somos essa fumaça... é isso mesmo, Deus? É isso?”, pensou. Mário tinha, em sua vida, um drama espiral. Não se cansava de conjecturar as coisas em sua profunda melancolia. E, por um segundo, esteve aliviado. “Podia ser eu”, concluiu. E bebeu o café de um só gole.

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