Fogos-fátuos



Cely olhava a prateleira cheia de pães, enquanto segurava o pires com a xícara vazia, a borra do café espalhada no fundo não traduzia nada de sua sorte. Pensava em silêncio, imersa no vai e vem da padaria que ficava próxima ao porto do Recife. Pensamentos perfuravam sua mente, porque não eram simples ideias novas e abstratas, mas memórias singulares que forjavam a sua personalidade como ferro quente marca a pele áspera de um boi. 

E a dor não existia mais, é verdade. Cely estava muito bem vestida, perfumada, cabelos pintados de luzes, com uma bolsa cara sobre a mesa, um carro importado estacionado na porta da padaria, filhos crescidos estudando numa boa escola, um bom marido… Mas o que lhe tomaram foi o tempo. E isso não se recupera, por isso Cely vagava de vez em quando. Hesitava como se gastasse, agora, a maior parte do seu novo tempo para pensar como teria sido a vida. Cely acordava na madrugada, enquanto o marido dormia longamente; ela se perdia na insônia infinda e até recriminava aquele ronco indolente do homem, um ronco de quem tem a vida inteira pela frente. Mas ele não tinha culpa de absolutamente nada. Ele chegou tarde, não a conheceu a tempo de mudar a sua vida para melhor, de evitar que toda tragédia acontecesse.

A atendente da padaria, que se deteve cinco segundos observando a contemplação de Cely na gritaria das crianças, não foi capaz de imaginar o que se passava na mente daquela cliente tão elegante e distraída. Nunca sabemos o que se passa na mente das pessoas e somos loucos para saber. Cely nunca falou sobre seus dias no cárcere para ninguém, porque, afinal de contas, a polícia conseguiu ajudá-la pelo menos agora. Já que se passaram anos sem que ninguém se desse conta do seu paradeiro, agora ao menos um esforço foi feito para que essas lembranças – ou pesadelos – não lhe assustassem novamente. Cely olhava os pães tão fresquinhos e lembrava dos ratos no canto do quarto, que tantas vezes passearam por cima da sua comida, quando a vida era tão repugnante que faltava-lhe o menor apetite. E já se passaram dez anos desde que essa história toda ficou para trás.

“A infância é como uma faca enterrada na garganta. É impossível retirá-la sem dor”, dizia uma mulher no filme Incêndios. Cely sofreu já adulta, mas essa fase de sua vida, tão duradoura quanto uma infância, lhe desenganou para o que sobrou de sua existência. A felicidade surgia como fogos-fátuos no meio do pântano. E é assim que ela se parece para a maioria das gentes. A elegância e o cinismo disfarçam as dores que escondemos, e por mais reles que sejam, as dores incomodam. Pior é quando não há elegância com que disfarçar. Resta-nos apenas o cinismo, a máscara que encobre a verdade. E corremos atrás do carro por comida, caímos de joelhos para pedir tempos melhores. Nem sempre conseguimos levantar da cama para encarar um novo sol sobre nossas cabeças. Nem sempre temos a melhor palavra para dizer ao nosso filho. E ainda assim, a vida vale a pena.

Nesse instante, os olhares de Cely e da atendente se cruzaram. As duas se deram conta da situação simultaneamente, uma distraída com a divagação da outra. A atendente, que tinha 19 anos, olhava Cely e se via quando fosse mais velha: uma mulher realizada na vida, capaz de alçar voos sozinha. Nesse novo tempo, Cely encarnava um novo personagem – e às vezes ela realmente se esmerava em segui-lo. Assim, Cely devolveu à atendente um sorriso sincero de quem foi pega de surpresa. E aquilo fez Cely entender que novas páginas precisam ser escritas.

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