Óculos escuros


Hoje me perguntaram por que, o tempo todo, uso óculos escuros. Fazia tempo que não respondia a essa pergunta. Tanto que, por um instante pensei em falar a verdade, mas logo me lembrei do desgaste que seria confessar, explicar, esclarecer, e apenas disse: tenho muita sensibilidade nos olhos, é um problema clínico. Meio decrépito, o porteiro novato, que me viu de dia e de noite passar na guarita com óculos na cara, se deu por satisfeito, murmurou algum lamento. Mas isso me deixou pensando, afinal.

Meus óculos eram como a máscara que qualquer pessoa normal usa para conviver em paz. No meio do mato, na natureza selvagem, eu não usaria esses óculos, que deixam meu nariz marcado e dificultam enxergar à noite, mas com a necessidade de estar com as pessoas sem desapontá-las, o jeito era usar. Vivendo aqui no Recife ou em qualquer cidade do Mundo, eu não me contentaria com uma máscara imaginária, de achar que bons modos apenas domariam meus instintos.

Era necessário que a máscara fosse simbólica e me coube usar óculos como máscara de proteção, de fingimento. Às vezes, punha uma camisa social com gravata, às vezes punha um relógio de ponteiros e isso tranquilizava quem topava comigo no balcão da farmácia ou na parada de ônibus. Passava uma boa impressão.

É verdade que eu, definitivamente, não me considero um monstro. Mas eu sentia e sabia: o homem, assim como o rato, é dos poucos animais capazes de matar o outro da mesma espécie por capricho, para demarcar espaço, para mostrar quem manda. 

Foi quando meu pai morreu vítima de câncer, em 2009, que eu me dei conta disso. No funeral, muita gente que não dava a mínima veio apertar a minha mão, muita gente que estava lá apenas acompanhando os amigos do meu pai se recusou a entrar na sala onde o caixão estava. Era só uma cerimônia. Depois que todos foram embora da minha casa e eu me vi sozinho, com os olhos úmidos, percebi que a figura em que eu projetava a dor e o sofrimento havia morrido. Ele era a minha referência de civilização.

Meu pai era, na verdade, um sentimento de justiça, era a força motriz do meu caráter, era para quem eu me virava sempre que fazia alguma merda. Agora me restava apenas o cinismo. E era um triste veneno, esse que nos faz recalcar toda essa raiva, esse egoísmo, essa falta de compaixão, a ausência de sentido, a sordidez e a pequenez que experimentamos na solidão – uma vez que viemos sozinhos ao Mundo e a cabeça ainda é um território impenetrável.

Por duas semanas, tirei férias, fui passar uns dias no Rio de Janeiro. Distribuí amargura pelos bares que farreei sozinho. No fim da viagem, caminhando pela praia de Ipanema, me ocorreu aquela gente toda de óculos escuros, aproveitando o verão e as prévias de carnaval, como se não houvesse amanhã. E de óculos escuros, estavam a salvo de mostrar a verdadeira essência dos seus olhos, o segredo dos seus olhos.

Decidi ali me proteger dos olhares dos outros. O olho é a brecha para a nossa alma, é de onde irradia a nossa felicidade, é o olho que entrega o nosso medo e a tristeza, a nossa ambição pelo horizonte, é o olho que revela quando estamos vivos.

Eu poderia optar por ficar em casa trancado, evitar as pessoas, o mau cheiro delas, o seu toque grosseiro, a forma descarada como elas desdenham de nós. Eu podia mesmo. Mas eu tinha total liberdade pra andar, literalmente, com a mentira estampada na cara. E foi aí que eu inventei esse conto exótico para contar às pessoas. Eu era o carinha de óculos e isso me bastava, não corroía o meu estômago, porque eu era sincero no íntimo. E todo mundo usa máscaras. A minha são os óculos.

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