Navegantes sem maré.


Sempre que estávamos subindo aquela ladeira, víamos, panoramicamente, a praia e eu tinha uma visão do paraíso. Sabia que ia escavacar a areia, descobrir poços, tentar construir castelos, tomar banho de mar, aprender a nadar e mergulhar. Ia voltar moreno, a pele dolorida de tanto sol e nenhuma preocupação com a vida. Hoje eu vejo a praia, como quem observa um escuro, os vagalumes passeando pelo ar. Minhas unhas enchem-se de areia, o sal arde em meus poros, sinto que já não me cabe na orla. Que eu seja um gigante, que sentado, contemple o oceano inteiro. Um adulto? É isso? Tudo bem. É decepcionante. Sou mais um a jogar a toalha e indagar o que falta. Entupo-me de subterfúgios, coisas que me fazem sentir completo. Dopado, melhor dizendo. Porque é assim que vive um adulto. Entope-se de açúcar, televisão, ideologia ou qualquer outra droga. São sempre fugas do cotidiano e estranhamento de uma fantasia nostálgica.
A criança vive concentrada. Ela não percebe o mundo ao seu redor, deixa o tempo passar, está sempre atrasada para o banho, quer dormir tarde e não pode, não consegue. Vive a doce ilusão da busca pela liberdade adulta. Mal sabe que contempla as madeixas da loucura, que pode sentir como ninguém, a gostosura de um banho de chuva ou de mar, de ingenuidade. Uma criança não entra no mar querendo fazer hidromassagem gratuita ou falar de negócios. Ela apenas quer ser arrebatada pelas ondas, ir para a parte funda da orla, onde só os adolescentes e adultos podem ficar. Ela quer desvendar a profundidade do mar, mas se vê aterrada só de pensar nos perigos do oceano. Os dilemas que as crianças enfrentam são bárbaros. Possuem a coragem defronte da fantasia. Criam e recriam personagens, enquanto adultos reclamam de falsidade, mentira e sentimento. A criança só conhece a mentirinha.
Só a criança pode celebrar uma missa de mentirinha, fazer uma cirurgia de mentirinha, apresentar um telejornal de mentirinha. E nas suas mentirinhas, recriam a vida, como ela nunca poderá ser recriada, por mais criativo que seja o pensante adulto. A criança conta a sua história, como o melhor dos escritores, imagina o futuro tal qual o mais louco dos videntes, tem a firmeza de poucos oradores. Na intimidade da sua cabana de almofadas, descansa o corpo franzino, adormece. A maioria dos adultos esquece-se de recriar. Aposenta as pantufas e inicia os sapatos, de sola dura, causando calos. Não conversa com as paredes, observa os sentimentos nas novelas. O infante brilha, no topo da sua timidez, balbuciando palavras, sem qualquer hesitação de pensamento. E abrindo os braços, contempla a vida, no pódio, celebrando o cerne da juventude, a fonte da felicidade pura, de onde nascem as contingências da alegria humana, o desejo pueril de realizar-se, do choro receber o seio, do chamado auscultar o grito, do coração alheio compreender nossa alma e acariciar nossa loucura, elogiando-a, olhando-a fraternalmente, como se estivéssemos na nossa cabana de almofadas, em casa, sorrindo sobre o perfume da maresia da minha infância.

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