Não tem volta


Tenho mania de cheirar a brecha das unhas. Da última vez, cheirava a cigarro. Eu lembro de ter fumado mesmo. Peguei minhas roupas jogadas sobre o cesto e cheirava àquele perfume que o cigarro tem, quando se impregna nas coisas. Eu tinha fumado uma carteira de cigarro Dunhill sozinho, na beira do canal. A água passava extremamente escura, intransponível. Tudo cheirava a vingança, mas meus olhos viam redenção. Eu não queria essa conversa novamente, mas o cheiro de tudo me impulsionava.

Abri minhas mãos e olhei longamente. A imagem era mais pobre do que os vídeos em alta definição. Mas aquilo era representação da vida. E na vida, a gente bate na carne, o som do murro é seco, o cheiro do sexo é peixe e suor ao mesmo tempo. Tinha gente caminhando dos dois lados da avenida, todos em silêncio invernal. Cada um carregava seu coração, que batia com mais força, para superar o mal-cheiro do canal, mas o coração estava guardado no peito. Quando se anda, não dá para perceber o peito latejando, que por dentro é sangue pulsando, vida pulsando.

Eu queria mais que tudo passar pelos mesmos lugares e parecer comum. Ver prédios, ruas, bares, árvores, tudo podia voltar a ser cinza. Mas ganhou cor. A minha mórbida cor pessoal. O maço de cigarros estava amassado no meu bolso. Tirei um, risquei o fósforo, mas o vento apagou e eu desisti, atirei o cigarro no canal. Ele boiou pelo curso da água podre. E minha roupa estava impregnada daquele cheiro de fumaça carregada, como nossa alma impregnada dos segredos banais que guardamos no fundo dos olhos.

As árvores tremiam por efeito de uma certa ventania abrupta. Eu gostava de ver meu cabelo voar ao vento e, durante alguns minutos, fiquei imóvel, sério, sentindo a brisa. Não havia multidão, apenas alguns transeuntes e eles estavam absortos. Minha paixão de viver estava rolando pela ladeira. Mas não havia arrependimento, não havia objeto fora do lugar. Havia só uma certa angústia.

Depois de Cervantes, todos têm que escrever qualquer coisa sobre moinhos. O que tem movido minha vida? Os espasmos de cada instante, eu diria. Bauman fala de uma soberania da vida, ou melhor, a expressão soberana da vida. Estar no mundo é ter moinhos na alma. E como eu andei, as águas passaram. Minhas águas são aqueles rostos caminhando pelas calçadas, pelas margens do canal, que importam ou pouco importam. Têm sempre valor.

Sou dos otimistas. Sempre acho que haverá tinta suficiente na caneta ou que a caneta nunca irá estourar na minha mão. Que tenho a ver com moinhos? Não sei nada de Andaluzia. Importa-me só o cheiro ácido dos cigarros, o curso sórdido do canal. Afinal, as coisas saem na urina. Minha maior dúvida era saber se as imagens dos olhos também escorriam junto com o mijo. Em algumas horas, eu queria que meus olhos fossem uma máquina fotográfica, mas tem coisas que eu queria realmente desver.

A imagem fica lá contida, como uma faca cravada nas costas, que sentimos mas não sabemos retirar. Os cães latem sem parar toda vez que eu venho caminhando pela rua, quando me dirijo à margem do canal. Eles sentem que minha urina é extremamente radioativa. E os meus olhos brilham feito o verde-limão. Mas a vida é sangue que se espalha pelo asfalto em brasa. Não tem volta.


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