Dolores caminha alcançando os silêncios

O
cachorro espraiado na grade da casa, a brisa pálida de uma tarde
nublada, a rua interditada pelos parques de diversão enferrujados, o
meio-fio descascado, os bancos de praça vazios, kombis cruzando a
rua de instante em instante. Giovana Soares sentada no sofá com o
caderno na mão, rabiscando seu trabalho ou talvez poemas ou memórias
ou um testamento. Da rua, só lhe divisamos o perfil, quase uma
silhueta de sua magreza, os cabelos pintados de preto, ralos,
adornados por um diadema de flores. Mulher de meia idade, Giovana
Soares tinha as mãos lisas, usava largos óculos de grau, geralmente
trajava vestido, exibindo pernas magras, algumas poucas rugas no
rosto, uma voz delongada, quase pastosa. Solteira, sem filhos, se via
agora sozinha de pessoas, tinha a companhia do cachorro, que já não
latia contra os transeuntes. A mãe, dona Elizabete, se fora há 15
dias. Giovana estava sozinha.
Ontem
à tardinha, a irmã dela, Silvana Soares, passara para fazer uma
visita rápida, mas o marido a interceptou, por telefone, quando ela
ainda abria o portão. Precisou sair às pressas para pôr mais sopa
no caldeirão. Giovana Soares ensaiou uma conversa, falaria sobre
mamãe. Não teve tempo. Voltou a ficar só. O cachorro, aquém de um
melhor amigo, comia na cozinha e voltava para o terraço, pra se
encostar na grade. Trancada no quarto, Giovana Soares só ouvia o
repique das unhas dele tocando na cerâmica da casa. A bíblia
permanecera fechada por todos esses dias, na mesa de cabeceira. A
fita vermelha marcava o índice, Giovana Soares não queria ler
aquelas palavras. Não sabia qual trecho ler. A cama era sempre
forrada com um tecido floral, um pouco puído pelo tempo. Ela deitava
modestamente, evitando desarrumar. Alinhava o corpo magro, não
gostava de ventilador. Por cima das paredes, que não encostavam no
teto, o vento da rua arejava a casa inteira. Sempre de sandálias,
ela não gostava de tocar o chão frio, podia pegar resfriado, cair
em fraqueza. Melhor se cuidar.
Uma
cristaleira na sala, as taças empoeiradas, tinha uma garrafa de
uísque ordinário já no final, bebida suficiente para uma dose. Um
dia após o funeral, depois da desilusão, Giovana Soares tomou três
copos seguidos e caiu no sofá, embriagada. Nesses dias, foi a única
vez que o cachorro se aproximou e encostou no tornozelo dela por
algumas horas. Às quatro da manhã, morrendo de frio, mas ainda
bêbada, ela levantou-se e, se escorando, seguiu até o quarto,
vestiu o casaco da mãe e deitou em posição fetal, chorando
inconscientemente. Mais cedo, de frente para o ataúde, Giovana
Soares sentira o coração palpitar, um ritmo ameaçador. Ela havia
tomado alguns comprimidos escondida. Sentiu verdadeiro medo de
morrer, esqueceu a mãe por um momento e se envergonhou disso, quando
percebeu. “Eu deveria ir junto com mamãe”, pensou, derramando
outra torrente de lágrimas, que alguém a socorreu, pensando se
tratar de mais um surto.
O
sábado parecia se arrastar na modorra, pela primeira vez. Chorar se
incorporou à rotina de seus dias, aquelas horas extensas, que os
afazeres mais simples eram ampliados na lucidez da dor. Giovana
Soares ouvia seus pensamentos martelarem o tempo todo. Quando comia,
quando preparava as aulas, quando estendia a roupa, quando se
debruçava na porta do quintal, quando tomava banho. Às vezes,
quando o cachorro latia abruptamente, ela se alarmava, um pouco
eufórica. Sentia o coração bater, lembrando daquele instante de
sobressalto dos comprimidos. Mas já não tinha pensamentos suicidas.
Era um começo.
Dolores
passeava pela rua despretensiosamente. Cumprimentava a todos que
conhecia, um movimento automático de acenar, dizer oi. Essa
caminhada depois do almoço servia para estimular sinapses,
aproveitar o tempo mais brando, mesmo que, cumprimentando alguém,
reclamasse do calor. Era assim: reclamar é o fio condutor, o impulso
para as considerações cotidianas, a falta de assunto se preenche
assim. Mulher baixinha, cabelos amarrados, óculos retangulares,
Dolores era uma mulher de fala rápida, tiradas que atropelavam os
pensamentos. Assim ela aprendeu a conviver em sua cidadezinha,
estando por dentro das novidades: quem morreu agora de manhã, os
parentes que voltaram do sudeste, os adultérios na calada da noite,
as viagens de todo porte, compras de fim de ano, as pequenas
corrupções. Falava dessa sorte de assunto com a melhor das
intenções, não queria ferir ninguém. Estava tão por dentro
quanto qualquer curioso. Dessa maneira, andava com olhar atento pelo
sábado à tarde.
— Boa
tarde, Giovana. Já faz quinze dias que dona Elizabete morreu, não
é?
— Parece
que faz mais tempo, Dolores. A saudade é grande demais. Hoje de
manhã, acordei chorando, disse Giovana Soares, sentindo os olhos
umedecerem. Mais cedo, ela pegou o celular e viu que a irmã
compartilhou uma foto de dona Elizabete no Facebook. Instintivamente
compartilhou a imagem e recebeu novas condolências. Cada palavra
fazia com que seu balde afundasse ainda mais no poço.
— Eu
já passei por isso, Giovana. Sei como é, afirmou Dolores, esperando
uma resposta de Giovana Soares, que ficou silenciosa, pensando longe.
— Quando
mamãe morreu, a gente sofreu muito. Nada que se faça vai trazer
alegria de novo pra dentro de casa, continuou Dolores.
— A
casa vai estar sempre vazia, sempre faltando alguma coisa, disse
Dolores.
— A
gente não consegue esquecer nem por um minuto, tudo que a gente olha
dentro de casa lembra ela, enunciou Dolores.
Giovana
Soares deixara o lápis cair sobre o tapete, olhava para a mesa cheia
de fotografias antigas. O pai, que falecera na década de 90, primos
distantes, tios em rostos sérios. Numa foto recente, envolta em
moldura dourada, de plástico, o rosto marcado de dona Elizabete com
uma flor na orelha e uma blusa de gola estampada. A velha não olhava
para a câmera na hora do registro. A boca marcada de pregas esboçava
um sorriso, mas o olhar se perdia completamente, envolvido em
pensamentos senis, fantasias, memórias fragmentadas. Não era mais
dona Elizabete, mãe daquelas mulheres provincianas. Aquela noite no
saguão, quando dona Elizabete caiu de joelhos sob o som alucinado de
trompetes e saxofones, Giovana Soares segurou sozinha a mãe pelo
braço, na porta do banheiro afastado, o piso molhado e cheio de
pegadas, as duas se entreolharam longamente e não se reconheceram.
Desde então, Giovana Soares passara a guardar segredos, como quem
engole alfinetes. Só uma radiografia podia revelá-los, mas isso não
seria feito. Giovana Soares iria para o fundo do poço com os
testemunhos de agonia encerrados no coração. Ânsias, desmaios,
abortos clandestinos, vômitos depois das bebedeiras, grosserias de
pessoas queridas, as traições da vida ficaram todas pra trás,
quando dona Elizabete foi diagnosticada como louca.
“A
gente não consegue esquecer nem por um minuto, tudo que a gente olha
dentro de casa lembra ela”, ouviu Dolores balbuciar isto e
compreendia profundamente essas palavras. Mas não queria falar a
ninguém. Dolores se despediu e prosseguiu sua caminhada diletante,
alcançando os silêncios da cidade. Ela caminharia até o ponto em
que a silhueta das casas não daria mais sombra para sua testa. Meia
volta, ela seguia pelo mesmo caminho, a calçada de concreto,
perseguindo a linha do meio-fio. Aquela casa de cerâmicas
amareladas, uma grade branca com ferrugens, o cachorro no canto
inferior esquerdo, Dolores lançou um olhar pra dentro da sala.
Giovana Soares não estava mais lá.
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