A sangue frio: tragédias cotidianas


Rostos, vários rostos diferentes. Esses dias frios no Recife refinam a nossa atenção e eu reparo bem nos rostos pela rua, a Conde da Boa Vista abarrotada, como aqueles cruzamentos em Tóquio. Cada rosto, uma história. Eu me pergunto seriamente, cá com meus botões: quantos rostos desses eu já não vi antes? Provavelmente vários – Recife não é uma metrópole tão grande. Mas a memória não retém nada. Fica aquela vontade de abraçar toda aquela gente, de compreender seus medos, compartilhar os sonhos e saber, sinceramente, por que não estamos todos juntos, partilhando a nossa riqueza. Está cada um como pode, cada um por si, segurando as pontas.

Hoje mesmo eu sonhei que me livrava de um assalto. Não sozinho, claro. Alguém me ajudava a render o bandido e tomar sua faca. Desarmado, indefeso, o bandido saiu correndo, por certo, amedrontado de encarar o revés. Não custou muito, entrei em outros cenários, o sonho se perdeu em si mesmo e, logo, eu acordei. A vida se apresentou fria, com este inverno rigoroso de agora para os recifenses. Nas redes sociais, logo soube que um amigo havia sido assaltado na praça do Diario. Três rapazes lhe tomaram o celular e o dinheiro com uma faca, em plena luz do dia, no mesmo caminho que faço para chegar ao meu trabalho.

Outro dia, li uma notícia sobre um fenômeno inusitado na China: as pessoas não ajudam os acidentados nas vias públicas. É como se aquela ajuda custasse um processo judicial; como se o bom samaritano fosse responsabilizado, na ausência do culpado, pelo acidente de trânsito. Então, como aquela pessoa é apenas mais uma, só mais um rosto qualquer no meio da multidão, nem vai nem vem, a melhor opção é deixa-la à própria sorte. E, na notícia que li, havia um vídeo com uma mulher que morreu sem que ninguém lhe prestasse socorro.

O frio aturde mais uma vez nessa noite do Recife, com tantas histórias trágicas aqui e acolá. Li, recentemente, umas duas reportagens sobre adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Tráfico de drogas, assaltos, analfabetismo, abandono, marginalidade, tantos verbetes que me passam, sem parar, à frente dos olhos. O coração vai comprimindo lentamente, um milímetro a cada gole. Noutro dia, eu de pé no ônibus, vejo uma criança com uma garrafa com cola de sapateiro na boca, circulando desnorteada entre os passageiros do coletivo. O cheiro era insuportável para mim, que estava distante. Li numa reportagem, também, que a cola ajuda a passar a fome.

Não sabemos bem o que fazer. Dostoievski, já em 1860, alertava que o altruísmo social não resolvia o problema, apenas piorava, porque faz com que os indigentes permaneçam vulneráveis. Dar uma moeda a um mendigo faz com que ele permaneça pedindo, se sustentando daquele ato mínimo de solidariedade. E as pessoas se alimentam de generosidade em vez de justiça. Vejo rostos iguais aos meus jogados nas ruas, agasalhados em lençóis rotos, papelões rasgados, revirando os sacos de lixo, praticando delitos para sobreviver. Vejo outros feito eu, carregando suas bolsas, seus documentos e objetos pessoais, seus projetos de vida e sua própria história. Uma humanidade ainda por se reconhecer. Uma humanidade ingênua, em sua maioria. E vários dias se passam, várias reportagens são feitas sobre a miséria. Os rostos vão se perdendo no compasso dos anos. E nós mesmos nos desconhecemos.

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