Psicopatia ocasional
Quando
nossos familiares colocam comida em nossos pratos, eles esperam que ajamos com
naturalidade. Como é de costume na classe média, não iremos comer com avidez,
olhos esbugalhados, como se não houvesse amanhã. Fugir de nossos hábitos é a
nossa condenação. Um trejeito diferente, um silêncio mais duradouro que o
comum, uma maior atenção à comida, rejeitando a companhia à mesa. É suficiente.
Aquela
era a vigésima noite seguida em frente à tela do computador. Já havia alguns
dias que eu não me sujeitava à convivência da casa. Um ano é o bastante para
conhecermos o dia-a-dia familiar. Sempre as mesmas festas, as mesmas datas
póstumas, as visitas em feriados de Finados e Dia da Independência. Isso já não
fazia qualquer sentido para mim. Meu foco era a linha do tempo do Facebook.
Como se fosse uma ocupação, eu fazia isso o dia inteiro. Ouvia música no YouTube,
lia algumas poucas notícias que apareciam enquanto eu rolava páginas e páginas
na internet. Um zumbi.
Depois
de quatro horas seguidas de internet, o notebook sobre a barriga, eu já começava
a sentir um desconforto de fome. Como não havia ar-condicionado, o meu pobre
ventilador travava uma luta dificultosa com o calor. Gotas e gotas de suor
escorriam da minha testa. Um lenço ao meu lado me auxiliava o quanto podia.
Recife fazia tanto calor quanto Dubai, já naquela época. As coisas bem
dispostas dentro do quarto, obedecendo aos pequenos focos de bagunça.
Levantei-me,
deixando notebook, celular, tablet e uma barra de chocolate sobre a cama. Todo
mundo já estava em seus lugares na mesa. Mamãe preparou macarronada, com um
suco feito com a polpa do cajá. Peguei um refrigerante de lata, na geladeira,
enchi meu prato e não olhei mais ninguém. Estava morto de fome, essa era a minha
primeira refeição, às 20h30.
De
repente, percebi que todos me observavam. Olhei de relance, mas não guardei de
todo a informação. Não era nada. Continuei mastigando, dando goles no
refrigerante. Eis que minha mãe começa a tirar todos os pratos e copos da mesa.
Meu pai sai da sala, enquanto meu irmão tira todas as travas da porta. Continuei
comendo até que minha mãe arrancou o prato da minha mão. Suguei o último
punhado de macarrão que ainda estava pra fora da minha boca. Também não disse
nada.
Meu
pai colocou umas malas na sala e, em uma bolsa de mão, guardava meus aparelhos
eletrônicos. Entregou-me um envelope com um pouco de dinheiro e apontou na
direção da porta. Engoli o resto de comida, sem digerir direito o que estava
acontecendo. Minha mãe permaneceu lavando os pratos sem olhar para a sala de
jantar. Meu irmão voltou para o quarto. Meu pai arrancou, em uma só puxada,
toda a parafernália de cabos de rede, roteadores e conexões. Chamou meu irmão,
num grito, e mandou descartar tudo. Depois disso, se fechou no quarto e nunca
mais o vi.
Peguei as malas, meio sem
jeito, desci as escadas. Estava na rua. Eu tinha que tirar um selfie. Quando
ativei a internet móvel do celular, vi que a velocidade estava ótima. Havia
dias que a internet do celular não estava boa assim. Entrei no Instagram, olhei
um pouco da linha do tempo e depois fiz o meu último registro. Estava
despenteado, ainda com fome, calor, e sem sorte. Vi meu irmão apagar a luz. De
súbito, houve uma queda de energia em toda a cidade. Quase morri, com o barulho
ensurdecedor das vozes e latidos, às 3h da manhã.
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