Enquanto hesitei, os espinhos das rosas me perfuraram os dedos. Mas havia perfume


Havia uma cortina azul tremulando no fundo do quarto. Dava para ver pela fechadura. Dava para ouvir o som do ventilador, em baixa velocidade. Era a trilha sonora de um silêncio de peles que se tocavam naquele quarto distante. Uma daquelas peles já havia me tocado longamente, tanto que deixou perfume nos meus braços, como se fosse uma tatuagem. Agachado na porta do quarto, eu cheirei meu braço algumas vezes. Como uma fumaça invisível, o perfume saía pelo buraco da fechadura. Ficou um pouco na maçaneta, que ela deve ter manuseado com firmeza.

Eu não sabia o que Virgínia fazia pelo centro da cidade. Eu ainda estava em roupas de dormir quando ela chegou de surpresa lá em casa, mais cedo.

- Me impressiono como esses pedreiros ficam quando eu chego por aqui, disse Virgínia, morrendo de rir do alumbramento dos rapazes que reformavam o prédio.
- Você é a musa deles. Quando você chega, a construção pára!, disse e caímos na risada.
- Você vai sair agora? Estou indo para o centro, pensei que você pudesse ir junto, já que você trabalha a essa hora, perguntou ela.
- Poxa, eu vou realmente, mas não agora. Ainda estou terminando meu trabalho. Você não pode esperar?
- Não posso. Sílvia vai me encontrar no meio do caminho. Estou sem internet, aí nem posso pedir para ela esperar.
- O que vocês vão fazer no centro?
- Eu vou resolver umas coisas com ela e estarei por perto do seu trabalho. Qualquer coisa, você manda mensagem para mim.
- Tudo bem, então. A gente se encontra no fim da noite, como sempre.

Não sei o porquê, mas saltei sobre ela, com um abraço fulminante. Rimos como crianças surpresas. Será que eu estaria nervoso? Não. Já me acostumei a ter Virgínia na minha vida. Como uma amiga, como uma alma companheira, que orbita na minha galáxia. Ela foi embora e eu voltei para a cama, para o ócio improdutivo. No computador, tocava Cartola, coincidentemente.

Cantava: “Queixo-me às rosas/Mas que bobagem/As rosas não falam/Simplesmente as rosas exalam/O perfume que roubam de ti, ai”. Aquele violão diáfano, combinado com a luz pouca do meu quarto. Caí entre os lençóis e travesseiros. O perfume dela nos meus braços e eu cheirava, como cocaína, como lança-perfume.

Voltei a lembrar da chuva da noite passada, os relâmpagos iluminando a noite do Recife, aquele céu vermelho. Com o violão no colo, eu tocava músicas românticas, enquanto Virgínia me embalava com aquela voz de mulher, cantando lindamente. Por intervenção dela, eu havia me tornado um boêmio. Veja mesmo: cerveja, violão, cantoria até os confins da madrugada, risadas, galanteios.

Me arrumei rápido, pois queria segui-la. Camisa de botão, meus óculos redondos, bastante perfume amadeirado. Com os fones de ouvido, caminhei distante, para que ela não notasse. No ônibus, fiquei do lado oposto. Ela não me percebeu, pois olhava distante. Aqueles olhos negros, mas felizes. Logo Sílvia se juntou a ela.

Sílvia de cabelos vastos, entre castanho e ruivo. Um rosto alegre e de gente curiosa, com pele branca, meio pálida. As duas juntas, como mel e alcatrão. Alegria, sagacidade e calor. Virgínia era morena, cabelo chanel, de franja. Um piercing no nariz, os dentes incisivos precisamente separados, para serem graciosos. Ela andava de um jeito másculo, mas era engraçado. Era um jeito Virgínia. Ria bastante, de um jeito contagiante. Mas ela parece que vivia num mundo próprio, achando graça de coisas que eram inacessíveis a mim. Tinha uma poesia própria.

Mas se havia um poema que definia meus pensamentos sobre Virgínia, um deles era Porquinho-da-índia, de Manuel Bandeira.

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

- O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.”

Elas desceram do ônibus na Avenida Guararapes e caminharam até a Rua da Aurora. Fui seguindo lentamente, mas também contemplando o Rio Capibaribe, que estava especialmente escuro naquele dia. A água quase transbordava para a calçada.

Chegaram pela Rua da Aurora, na altura do Siri do mangue beat. As árvores na beira do rio tinham um verde especial, já que a água estava nebulosa. Havia chovido ontem, o dia estava nublado. Era uma beleza europeia, na Veneza brasileira.

Sílvia, com seus cabelos cacheados, fazia a paisagem parecer uma pintura. Cada cacho posto em lugar estratégico, uma genuína beleza americana, só que com todo o sabor. Virgínia tinha olhos curiosos, o riso aberto para aqueles lugares inóspitos, mas belos. Ela tinha uma boca carnuda que transformava o riso mais ingênuo numa beleza pretensiosamente libidinosa. E se houvesse uma trilha sonora, me perdoe a terra do frevo e do maracatu, mas era um samba de gafieira.

Elas fotografavam as flores, o siri, o Rio Beberibe, que se encontrava com o Capibaribe naquele ponto, a ilha do Recife Antigo. Eu me esgueirava entre os carros, do outro lado da rua. A Rua da Aurora era um lugar realmente ermo, como uma alameda de tempos passadas, seus moradores ilustres todos arrebatados, o lodo pelas calçadas, disputando lugar com o mármore e os monumentos, os coretos, as flores. O mangue cresceu e tomou conta. De vez em quando, turistas passavam. Mendigos e moradores de rua usavam drogas, cozinhavam em latas, dormiam, transavam, abordavam algum transeunte desavisado. A calçada da Aurora, na beira do rio, era um palco que dava para o rio caótico, para os seres estranhos dali.

Elas não se demoraram muito. Mandaram duas fotos para mim.

- Eu acabei de ver vocês. Passei no ônibus. Vocês estão lindas, disse a elas, por mensagem.

Elas ficaram impressionadas, brincaram, riram. Eu permaneci no meu posto, calado, olhando as duas. Sentadas num banco, conversaram rapidamente. Depois se debruçaram no parapeito do rio, olhando a linha do horizonte, que era a ilha do Recife Antigo. Não tinha nada lá.
De repente, as duas saíram e caminharam em direção ao Parque 13 de Maio. Entraram num prédio cinza, que fica nos arredores do parque. Deixaram a porta entreaberta. Eu subi logo em seguida. Era um edifício de 15 andares sem porteiro. Elas tomaram o elevador, eu observei de longe. Pararam no sétimo andar. Chamei o elevador logo em seguida e subi pra lá.

Era um longo corredor, as portas não tinham números. Fui caminhando devagar, até que parei numa porta cheia de ranhuras. Era cinza, como o prédio. O perfume de Virgínia estava no ar. Me abaixei para olhar na fechadura e vi que não era um apartamento, mas um quarto. Dava para ver uma cortina azul tremulando no fundo. Não ouvi barulho durante um bom momento, até que alguém lá dentro ligou o rádio. Talvez uma rádio comercial, porque ouvi aqueles locutores anunciando eventos para o final de semana, uma voz alucinante. Mudaram de estação ou colocaram um CD, não sei. Passou a tocar uma música instrumental, tipo jazz, quase som ambiente.

Subitamente, vi Sílvia passar pelo quarto, com um candelabro na mão, várias velas vermelhas acesas. Fiquei observando durante mais um tempo, mas só via a cortina tremular, acho que estimulada por um ventilador em baixa velocidade. Num certo momento, ouvi risadas. A de Virgínia chamava mais atenção, como sempre. Não sei se havia mais alguém.

Decidi sair. Entrei numa porta que dava para a escada. Certamente, não seria visto ali. Acendi um cigarro que estava meio amassado e solitário no maço. Cheirei meu braço mais algumas vezes e desci a longa escadaria. Segui para o trabalho. Veria Virgínia e Sílvia mais tarde, de qualquer maneira. Esqueci o assunto. Pelo menos por enquanto.

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