Ensaio sobre crise, carência e espelhos

Foto: ulalume/Flickr

As pessoas do nosso tempo sentem uma imensa carência de que suas dicções sejam ouvidas, levadas em conta. Suas vidas ficcionais precisam ser a biografia perfeita para os paradigmas do mundo. Afinal, essas pessoas orbitam dentro de um problema sério de individualismo, de romantização e dramatização das desigualdades e do que a psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco chama de “histerização das identidades”, como uma profunda crise contemporânea.

Conheço pessoas que acordam diariamente tentando criar a nova cor, estipular uma nova dimensionalidade, inventar a nova revolução, reconhecer e ditar a nova estética, enfim: influenciar, ter poder, principalmente se utilizando das palavras. E que trabalho mais nobre e desprovido de sentido. E tudo isso cabe nos falados 15 minutos de fama, o excesso de discurso por todos os lados nos impede de ouvir o nosso pensamento. Como Saramago menciona, em um documentário que eu não lembro, a mídia do nosso tempo é como se nos entregassem 500 jornais na nossa porta para ler tudo em um dia. Vivemos um tempo impossível e as pessoas tensionam ainda mais essa impossibilidade.

Pior: estamos todos sendo comprimidos na tela do celular. Os velhos costumes, as tradições, as mais trabalhadas ideologias, conceitos, a família, o deus, tudo, tudo está lá ou em processo de miniaturização e virtualização. Tudo pressurizado no mais inovador design cubano do momento. Dentro de toda liquidez do mundo moderno, é preciso trazer ainda mais complexidade para alimentar os egos, liquidificar as egolombrias, dar vazão às economias da vaidade. O tempo todo, há lobos da estepe ceifando o que foge ao kitsch - quando até o anti-kitsch se comporta como kitsch.

E o que é passível de distinção, no meio de tanta relevância? O que é digno de credibilidade, digno de nota, quando há tantas vozes se sobrepondo ao bom gosto?

Esquerda e direita, popular e erudito, clássico e moderno, sexo, orientação sexual e gêneros, periferia e centro, raças e etnias, religiões e espiritualidades, classes sociais e estilos de vida: pressa em dizer faz com que digamos mal dito, apenas pela vaidade de sermos os primeiros. Ou talvez pelo ufanismo das nossas pátrias particulares. Sem perceber, nos abraçamos a um rótulo que nem sabemos que usamos.

E por tantas vezes, eu tenho me reservado o silêncio. Por que? Gente querida dizendo bobagem, palavras que por A mais B se anulam. Palavras que depõem contra nós, contra a verdade, contra a clareza e a veemência da realidade. Palavras que simplesmente fogem à coerência e, por isso, eu apenas me permito ler, porque sei que meu julgamento em nada acrescenta nesse castelo de cartas em que estamos todos metidos, em maior ou menor grau.

A verdade é que não há paz duradoura com a nossa consciência. Sempre virá um fato novo para descortinar a hipocrisia, sempre terá um obelisco a sinalizar o nosso cinismo. E a nossa existência se assemelha à queima de uma vela. Mesmo apagada, a vela permanece viva, em vias de que se acenda, objeto que é. Mas sem a luz, de que serve uma vela? Enfeitar o dogmatismo de um altar? O potencial é dono do ser humano. Somos reféns do nosso potencial, algo que está fora do nosso alcance, algo que ilusoriamente nos se dispõe, mas que está aquém. Não sejamos prepotentes com a nossa capacidade nesse plano de existência. Não mesmo.

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