O aroma, o sabor e a música dos cafés
A gente achava que ia completar o cartão fidelidade passando
por todos os cafés do Recife que participavam daquela promoção, mas não houve
tempo. O fim do ano acumulou muitos compromissos, saídas, cansaços, encontros
inadiáveis. O café ficou para depois. Mas não tem problema. Podemos encarar o
próximo ano como a continuidade dos dias, vivendo um de cada vez e encaixando
um café numa noite desocupada. Também podemos encarar como um novo ciclo e
muitos cafés podem acontecer.
O fato é que eu havia cansado de juntar os pedaços do meu
coração. Deixei ali amarrado, feito uma gambiarra. O que viesse me deixaria
satisfeito. Sabe por quê? Havia várias discussões toda semana. Desentendimentos
e reconciliações, ciúmes que desestabilizavam as promessas de bem-estar. A
linha tênue entre amor e raiva era cruzada mais vezes do que eu gostaria. Certa
vez, sozinho no café, depois de muitas brigas e voltas, de confiar que estava
curado, experimentei ouvir Chico Buarque. Foi como aquela tentativa de arrancar
o cascão da ferida. Tornou a sangrar. Chorei timidamente, enquanto caminhava
pelas ruas do centro da cidade.
O nosso primeiro encontro, quando trocamos casualmente as
primeiras palavras, não dava conta de que chegaríamos a um alto grau de
intimidade, já que socialmente, éramos apenas bons amigos. Do balcão do seu
escritório, na secretaria, ela apenas pedira que eu assinasse um documento.
Agora eu me via completamente mergulhado no escuro da sua pupila, onde eu
acreditava que estavam guardados todos os nossos segredos. “O futuro é muito
sério. Não brinca com isso”, ela sempre me dizia, enquanto vestíamos as roupas
sem muita pressa. E eu hesitava. Ela vestia a roupa, amarrava o cabelo fazendo
um rabo de cavalo, se olhava no espelho e me pegava pelo braço para tomarmos um
sorvete no fim da tarde de domingo.
Esses pequenos gestos iam quebrando as minhas pernas. Primeiro
ela reparou no meu jeito de escrever, as minhas pontuações que entregavam o meu
ciúme, o meu silêncio que denunciava as ausências, em outros braços e bocas.
Depois começou a me emprestar alguns discos que gostava muito. “Se você perder,
eu te mato! Esse Gonzaguinha é o meu preferido. Foi meu pai que me deu”,
contava, cheia de entusiasmo, lembrando da reunião de família, os poemas
declamados na noite de natal, as poucas palavras que seu pai dissera antes de
entregar o embrulho. O pai tinha orgulho de compartilhar o gosto musical com a filha. Na minha escrivaninha estava uma pilha de discos, que eu
ouvia no notebook enquanto escrevia para a revista. E os discos vinham sempre
acompanhados de mensagens sublinhando quais as melhores músicas, quais as mais
especiais. O porquê dependia da minha interpretação e essas músicas coloriam o
caminho que nós dois percorremos durante todo esse tempo.
Cecília me falara de uma dor que lhe chegara sem explicação,
sem diagnóstico. Seus tratamentos e terapias aliviavam as pontadas que ela
preferia guardar para si. E isso me afligia incessantemente, muitas vezes em
momento inesperado, a preocupação me assaltava. “Você tem a mim, meu bem. Você
tem a mim sempre”, eu dizia, pensava, martelava. E, ao mesmo tempo, essa
certeza se insinuava como desespero meu, de não perder a joia que estava bem
ali na minha frente. Essa mesma joia me fez perceber como eu tinha uma
dificuldade tremenda de dizer “não”. E essa permissividade era como a minha
própria dor, a causa dos meus problemas, o obstáculo à minha felicidade.
Cecília me mostrou o pulo do gato, quando eu passara meses com a cabeça
mergulhada dentro do tanque, sem entender meus problemas.
Por que não conseguíamos nos acertar? Era a dúvida que
retardava a hora do meu sono cotidianamente. E, no fim das contas, esse
ultimato, essa imposição fatal de achar uma decisão era um propósito para o
qual eu não estava minimamente preparado. Por isso eu me apegava piamente à
tranquilidade dos cafés, àquela música amena, quando se é possível conversar em
paz. Cecília vinha sempre me encontrar sem imaginar o caos, sem sonhar que eu
me digladiava com meus demônios, que eu estava ali de corpo e alma. O café
esquentava meu coração e isso bastava. Não se sabe até quando, mas meu coração
estava ali, amarradinho, esperando o dia seguinte e as novidades que o compasso
das horas traz.
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