O aroma, o sabor e a música dos cafés



A gente achava que ia completar o cartão fidelidade passando por todos os cafés do Recife que participavam daquela promoção, mas não houve tempo. O fim do ano acumulou muitos compromissos, saídas, cansaços, encontros inadiáveis. O café ficou para depois. Mas não tem problema. Podemos encarar o próximo ano como a continuidade dos dias, vivendo um de cada vez e encaixando um café numa noite desocupada. Também podemos encarar como um novo ciclo e muitos cafés podem acontecer.

O fato é que eu havia cansado de juntar os pedaços do meu coração. Deixei ali amarrado, feito uma gambiarra. O que viesse me deixaria satisfeito. Sabe por quê? Havia várias discussões toda semana. Desentendimentos e reconciliações, ciúmes que desestabilizavam as promessas de bem-estar. A linha tênue entre amor e raiva era cruzada mais vezes do que eu gostaria. Certa vez, sozinho no café, depois de muitas brigas e voltas, de confiar que estava curado, experimentei ouvir Chico Buarque. Foi como aquela tentativa de arrancar o cascão da ferida. Tornou a sangrar. Chorei timidamente, enquanto caminhava pelas ruas do centro da cidade.

Estava solteiro há alguns meses, me sentindo cheio de autonomia, capaz de adentrar em qualquer tipo de relacionamento. Eu pensara: estou pronto para aguentar tudo. “Tenho a cabeça aberta, me sinto meio psicopata por não nutrir sentimentos duradouros, acho que é possível descobrir coisas novas, pessoas novas, sensações novas”. A verdade é que, como um portador de osteogênese imperfeita, ou como dizer melhor, com meus ossos de vidro, eu não sabia como era me apaixonar desde o comecinho, sentir o frio na barriga. Criar o hábito de telefonar, de saber como está, de oferecer ajuda sempre, dedicar meu tempo para, além do prazer, poder cuidar do outro.

Eu voltara para Cecília depois de um ano conturbado. Ela estivera sempre ali, circundando meu cotidiano, atacando a minha normalidade com seu aspecto sério e sua generosidade que logo se desvelavam para mim em algo mais. Poucos sabiam que, por detrás daquela pose elegante, da profissional educada e comprometida, havia uma mulher apaixonada por samba, que ria fragilmente com o cabelo desarrumado pelo vento. Meu melhor passatempo era decifrar seu olhar de Mona Lisa, aqueles olhos enigmáticos, a expressão ambígua que poucos alcançavam na correria diária, na mesa de bar, nos eventos públicos.

O nosso primeiro encontro, quando trocamos casualmente as primeiras palavras, não dava conta de que chegaríamos a um alto grau de intimidade, já que socialmente, éramos apenas bons amigos. Do balcão do seu escritório, na secretaria, ela apenas pedira que eu assinasse um documento. Agora eu me via completamente mergulhado no escuro da sua pupila, onde eu acreditava que estavam guardados todos os nossos segredos. “O futuro é muito sério. Não brinca com isso”, ela sempre me dizia, enquanto vestíamos as roupas sem muita pressa. E eu hesitava. Ela vestia a roupa, amarrava o cabelo fazendo um rabo de cavalo, se olhava no espelho e me pegava pelo braço para tomarmos um sorvete no fim da tarde de domingo.

Esses pequenos gestos iam quebrando as minhas pernas. Primeiro ela reparou no meu jeito de escrever, as minhas pontuações que entregavam o meu ciúme, o meu silêncio que denunciava as ausências, em outros braços e bocas. Depois começou a me emprestar alguns discos que gostava muito. “Se você perder, eu te mato! Esse Gonzaguinha é o meu preferido. Foi meu pai que me deu”, contava, cheia de entusiasmo, lembrando da reunião de família, os poemas declamados na noite de natal, as poucas palavras que seu pai dissera antes de entregar o embrulho. O pai tinha orgulho de compartilhar o gosto musical com a filha. Na minha escrivaninha estava uma pilha de discos, que eu ouvia no notebook enquanto escrevia para a revista. E os discos vinham sempre acompanhados de mensagens sublinhando quais as melhores músicas, quais as mais especiais. O porquê dependia da minha interpretação e essas músicas coloriam o caminho que nós dois percorremos durante todo esse tempo.

Cecília me falara de uma dor que lhe chegara sem explicação, sem diagnóstico. Seus tratamentos e terapias aliviavam as pontadas que ela preferia guardar para si. E isso me afligia incessantemente, muitas vezes em momento inesperado, a preocupação me assaltava. “Você tem a mim, meu bem. Você tem a mim sempre”, eu dizia, pensava, martelava. E, ao mesmo tempo, essa certeza se insinuava como desespero meu, de não perder a joia que estava bem ali na minha frente. Essa mesma joia me fez perceber como eu tinha uma dificuldade tremenda de dizer “não”. E essa permissividade era como a minha própria dor, a causa dos meus problemas, o obstáculo à minha felicidade. Cecília me mostrou o pulo do gato, quando eu passara meses com a cabeça mergulhada dentro do tanque, sem entender meus problemas.

Por que não conseguíamos nos acertar? Era a dúvida que retardava a hora do meu sono cotidianamente. E, no fim das contas, esse ultimato, essa imposição fatal de achar uma decisão era um propósito para o qual eu não estava minimamente preparado. Por isso eu me apegava piamente à tranquilidade dos cafés, àquela música amena, quando se é possível conversar em paz. Cecília vinha sempre me encontrar sem imaginar o caos, sem sonhar que eu me digladiava com meus demônios, que eu estava ali de corpo e alma. O café esquentava meu coração e isso bastava. Não se sabe até quando, mas meu coração estava ali, amarradinho, esperando o dia seguinte e as novidades que o compasso das horas traz.

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