Só a fachada



Pergaminhos sobre a mesa, um jarro de rosas de plástico, uma carteira de cigarros Camel, celulares em desuso, calendários com paisagens, um bloco de notas rabiscado, cascos de cerveja, um revólver 38 enferrujado e um disco de Chico Buarque, tudo disposto aleatoriamente. No canto da mesa, um cortador de unha com defeito, um livro de Albert Camus cheio de orelhas, O Mito de Sísifo. A mesa estava bem abaixo da janela, esta com linhas cartesianas cruzando-lhe o centro do vidro. Cortinas azuis amarradas com laços brancos encardidos. Da janela, me coloquei no parapeito para observar a rua, ofegando depois de subir os quatro lances de escada - um cheiro de gato infernal nas dependências do velho edifício...

Não tente. Ou você faz ou não faz. Essa ideia ficou martelando a minha cabeça. Eu vi os ônibus vindo na minha direção, as pessoas concentradas em chegar no trabalho e senti a cidade me envolver em todo o seu calor, como costuma fazer diariamente. Deixei as questões de lado, as ideias que faziam meu corpo estremecer antes de dormir. Páginas viradas pelo vento, pensamentos que não se fixavam na cabeça. A mesa estava ali toda bagunçada, eu não tive tempo de dar ordem. Ou você faz ou não faz. É isso. Está ali protelando, pensando nas possibilidades, de como seria ou não seria. Senta na cadeira e escreve. Não protela, não adia, não procrastina, não atrasa a vida, não passa o tempo olhando para o nada, enquanto tua cabeça se perde em sensações, raciocínios vazios. Nada fica na cabeça, você gasta os instantes com coisas fluidas.

Marta deixou uma garrafa cheia de café, mas esqueceu de deixar a cafeteira ligada. O líquido escuro esfriou, o cheiro se impregnou mais uma vez na toalha da cozinha e sumiu. A chave pendurada na parede, a porta havia ficado aberta, acho que fora no mercado. Marta tinha pena de mim, eu percebia isso no seu olhar que me varava as córneas. Era como se eu fosse de vidro e ela olhasse não na minha superfície, não diretamente nos meus olhos, mas olhava no centro de mim, essa substância humana liquefeita, ela penetrava feito flecha, o que se via além da verdade. “Meu filho, faça alguma coisa na vida, você passa o dia todo nesse celular. Não traz uma mulher séria em casa, os móveis caindo aos pedaços, só esse computador que funciona e você faz olhar pornografia. Meu filho, a vida não é só isso”. Eu apenas assentia com a cabeça, meneava olhando muito pouco para aquela mulher de meia idade, sábia, vivida, rosto enrugado, a voz macia e mansa como se me acalentasse.

Marta era uma pessoa boa, de verdade. Seu vício na cerveja era algo excêntrico, mas completamente compreensível. Bebia religiosamente às segundas-feiras, de ficar embriagada, irreconhecível, às vezes jogada na calçada do boteco, “Romero Bar e Restaurante”. Seu Romero vinha limpando as mesas e guardando uma por uma, enquanto Marta balbuciava palavras para si mesma, bebendo no gargalo. O dono do bar nem se preocupava mais, já sabia do hábito da mulher, da sua disciplina em não repetir o exagero nos outros dias. A terça-feira era sua segunda. Reduzida às cinzas, ela ia se recompondo aos poucos, tomando café puro, fumando um cigarro pra tirar o mau agouro, água no rosto de instante em instante e uma garrafinha squeeze para hidratar. Eu já sabia quando ela chegava em casa, porque o café da terça-feira era mais forte do que o normal, o cheiro incensava o prédio.

Nesse dia, eu tinha dormido fora. Bebi com uma amiga e dormi na sua rede. Antes que ela acordasse, eu dei por mim, babando no meu ombro. Os galos cantando na vizinhança, o barulho os ônibus carregando trabalhadores logo cedo. Uma infinidade de garrafas no canto da sala, litros de cerveja barata. Lembrei que havia esquecido o revólver em casa. Os tempos não estavam fáceis. Da varanda envelhecida, eu percebi que estava bem no centro do Recife, o comércio todo ainda fechado, a igreja, o mercado público, alguns bancos de feira. Nas janelas ao lado, uma infinidade de roupas coloridas estendidas nos varais, os pássaros pousados cantando alegremente. Me admiro como não fui assaltado, não apanhei dos moradores de rua, cheiradores de cola, flanelinhas, eu que sempre passo zombando. Eu estava na casa de Celine. Ela, certamente, preferiu deitar-se na cama de casal. Entre cervejas, baseados e cigarros, ela disse aquilo pra mim: não tente. ou faça ou não faça. “Obrigado, querida” e beijei sua orelha. Lhe dei boa noite um pouco depois disso e minha cabeça girou, enquanto eu olhava para o teto. Pus minha perna para fora da rede, a fim de me equilibrar um pouco.

Eu estava ali na vida, como uma folha seca que o vento carrega, a respiração do búfalo no inverno, a luz dos vaga-lumes na noite, um gato que passeia pelos muros da cidade e não sabe o que lhe acerta, o que lhe ameaça. A dádiva da vida dos animais é estar desavisado, é responder apenas aos instintos. Eu, por outro lado, devia ser proativo, bem apresentável, falar português fluente, norma padrão, ter todos os dentes, estar perfumado, cabelo bem cortado e penteado, as unhas aparadas, a camisa bem passada a ferro quente, sapatos engraxados, em suma, um homem branco, jovem, católico, curso superior, uma pessoa de bem, de boa aparência. E quanto isso me custaria? Toda uma vida. O revólver, por sorte, estava sem balas. Servia apenas para dar susto. Só a fachada.

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