Como sonhar acordado



O telefone soou em um dos andares do prédio, cortando o silêncio da meia-noite. Aquele barulho agudo repicava nos corredores, mas ‘N’ não acordou. ‘O’ estava na cozinha, enrolando um baseado e ouvindo uma playlist de rap brasileiro no Youtube; ele não trabalharia no dia seguinte, não tinha com que se preocupar. Certamente ‘N’ estava cansada de prestar atenção aos professores na faculdade. Estranhamente, ela dormiu sem esforço, sem procurar ansiolítico ou cerveja, sem ajuda de ninguém. ‘O’ não lhe incomodava, não dava a mínima, mas não invadia seu espaço. E por mais leve que o seu sono fosse na presença de um homem, a campainha do telefone à beira da madrugada não lhe fez acordar.

O fato é que ‘N’ não costumava dormir antes de meia-noite, nunca. Jovem, estudante, recifense, ela era uma pessoa de hábitos noturnos e isso ficou claro quando ela começou a morar com ‘U’ no centro. ‘U’ era uma artesã sem muitos propósitos. Contrastava com ‘N’, que, com muito afinco, cursava História na Universidade de Pernambuco. ‘N’ teve uma instrução básica deficiente e, por mais jovem que fosse, ela sabia disso, precisava correr atrás.

Cursar qualquer graduação na área de Ciências Humanas, no contexto em que vivíamos do Recife e do Brasil, era praticar um habitus específico, com gostos específicos, com uma vestimenta específica. Pra se ter uma ideia, pessoas de 20 e poucos anos viviam uma moda de piercing no septo nasal nessa época. ‘N’ não demorou muito a aderir. Ela aderiu aos óculos arredondados de “intelectual”, às sandálias de couro, aderiu ao cigarro natural, de fumo e seda, aderiu ao gosto musical alternativo. Aderiu, por fim, a aceitar seus cabelos cacheados. Quem visse ‘N’ na rua, se prestasse atenção, diria que ela era uma recifense geminiana, estudante de História.

Quando saiu de casa, ‘N’ encarava dois dilemas. Sair debaixo da saia da mãe, para aprender a ser independente, para amadurecer. Mas saiu, também, porque não sabia lidar com as dificuldades que a mãe enfrentava com a doença e com o dinheiro curto. Estudou o máximo que pôde, contando à mãe que seu sonho era ser professora, o que não era a realidade. ‘N’ não sabia bem o que era o seu sonho e, ficava claro quando alguém perguntava: ela não respondia sem gaguejar. Matutava uns cinco a dez segundos, pra dizer qualquer coisa sobre presentear a mãe com seus esforços profissionais.

A geração de ‘N’ era muito peculiar, tanto que a imprensa vivia publicando reportagens e análises sobre os costumes dos chamados millennials. Ela talvez fosse alguém aprisionada dentro dessa geração, alguém que não lida bem com frustrações e, ao mesmo tempo, quer sempre mais. Dizem que é a geração mais “do contra” que já existiu, mesmo porque, depois que o Muro de Berlim caiu, parece que toda a máscara veio abaixo, toda tradição se acabou, dando lugar a um neoliberalismo corrosivo e ávido por transformar tudo em mercadoria, tudo que é pequeno se agiganta e não sabemos mais o valor de nada.

O problema da internet, por exemplo, que sugava a vida das pessoas pela tela do celular, para ‘N’ era algo enfastiante. ‘N’ demorou a aprender inglês, ‘N’ nem sequer curtia música internacional, ‘N’ odiava mortalmente as pessoas que ficavam sem dar resposta numa conversa porque olhavam o celular. ‘N’ às vezes demorava dias para aparecer no Facebook. Ela estava, sempre, preocupada, brincando com os gatos, lendo alguma coisa da faculdade, fumando, conversando com ‘U’, bebendo ou dançando num barzinho qualquer do centro.

Ser “do contra”, para a geração de ‘N’, tinha um preço muito caro. Nesse caso, custava a sanidade mental, o sono, a capacidade de interpretar a realidade. Essas pessoas, que lutam, dia e noite nas redes sociais e na vida, contra opressões históricas como o racismo, a homofobia, o machismo, pregam uma nova visão sobre os gêneros, sobre moda, enfim, uma geração que veio pra ficar. Por isso, como consequência da guerrilha revolucionária contra o patriarcado, o consumismo e o eurocentrismo, os millennials feito ‘N’ acabam adquirindo depressão, insônia, ansiedade, se tratando com medicamentos “tarja preta” e cortando quase literalmente os pulsos. Por outro lado, aqueles que preferem se drogar com álcool, maconha, cocaína e os sintéticos, sofrem algum tipo de sequela que compromete a atenção, o jeito de falar, algo com que a geração ainda não aprendeu a lidar.

Quando me encontrou no Recife Antigo, depois de muito tempo se me ver, ‘N’ nem arrodeou. “Desde a primeira vez que dormi com ‘O’, eu dormi feito um anjo. Não acordei nem um segundo, dormi bem que só”, me disse ela, com uma desfaçatez que beirava o cinismo, como se quisesse me provocar. Isso porque, na cama comigo, ‘N’ não pregava os olhos sem ter que tomar metade de um rivotril. Eu apenas assenti, porque não estava a fim de problematizar. ‘N’ veio, simplesmente, para me dizer que vivia o melhor dos mundos ao lado de ‘O’. Eu fiz que “tudo bem”, com um sorriso tímido.

Ainda me lembro daquela longínqua noite de sábado, quando ela não gozou. O sol nem tinha aparecido totalmente no domingo, ela bateu com força a porta do meu apartamento e mandou um SMS: “egoísta do caralho”. Dentro do ônibus chorando, de óculos escuros no rosto, para encobrir que passara mais uma noite frustrada comigo. Era esse sentimento de liberdade sexual que contrastava com a descoberta de que homens livres e desconstruídos, na verdade, eram problemáticos e incompetentes.

O homem desconstruído, o homem que se preocupa em falar que é desconstruído, certamente frustra, porque entre o discurso e a prática há uma distância. É a realpolitik do mundo amoroso, o confronto com a performance. ‘N’ mandou eu me foder, com razão, mas eu também não soube o que dizer, além de maçantes e repetidos pedidos de desculpa. É só o que a gente sabe fazer.

N’ descobriu ‘O’ num acampamento de verão, em Garanhuns, durante um congresso pedagógico. Depois de chapar no meio do evento, ‘N’ saiu correndo para os fundos da escola em que aconteciam as palestras, para vomitar o cachorro-quente e o espetinho com a cerveja quente. ‘N’ era muito chegada nesses divertimentos tropicais, regados e carregados. ‘O’ estava sentado sobre uma pedra, no fundo do corredor, fumando bastante, calado, com um fone de ouvido, como se fosse um gato preto que abanasse o rabo para si mesmo, para se distrair da vida. Naquele instante, ele riu dela, eles riram um do outro, riram da solidão de ambos num momento de dispersão longe do Recife, onde foi possível respirar um ar um pouco diferente. Sem pudor, ‘O’ se aproximou de ‘N’, limpou seu rosto e tascou um beijo.

Eles transaram a noite toda, na barraca dele, e só dormiram no ônibus de volta para o Recife, quando já enfadados, enlaçaram os dedos, deram as mãos. Não demorou muito para que outros encontros ocorressem, para que ela passasse a enxergar nele sua metade da laranja, para que ela projetasse naquela alma pacata todos os seus anseios mal desenhados, como rascunhos de um sonho. ‘N’ não sabia expressar, mas colidia com a vida, estilhaçando tudo. E ela finalmente dormiu sem o “tarja preta” ao lado de ‘O’, que também dormiu com um sorriso amarelo no rosto.

Eu soube disso à distância. Me lembro de tê-los visto por acaso numa feira, lembro de apertar a mão de ‘O’ com força. Eles não se importavam com os meus códigos para intimidar, para mostrar o quanto eu estava bem. Estavam vivendo a própria história, como se fossem um sonho inconsciente dentro da cabeça de ‘N’. O sonho acordado. Mas ‘N’ sempre dizia: meu sono está maravilhoso.

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