Audácia de colidir com o outro





Sempre optei pela companhia, por achar que eu não tenha muito o que dizer a mim mesmo. Não sei dar conselho a mim mesmo, fazer autoanálise, jogar com a consciência. Até gosto de mim, mas sempre me jogo na monotonia, como se todo dia fosse domingo. E o outro é o centro das minhas objeções e discursos, é quem olha o meu sorriso. As palavras que anseio dizer, as respostas incompletas que podem ser melhoradas num próximo encontro, as novidades que um certo alguém gostaria de saber. O brilho do olho que me observa enquanto falo.

O outro é esse impulso cortante que me toca durante o sono no meio da madrugada. Dirijo-me à janela do apartamento, deparo com uma lua completa de esplendor e me pergunto se existem outros mirando-a neste momento, três e trinta e cinco, de janelas adjacentes ou até remotas. Entre os quartos frios de luz apagada, vejo janelas iluminadas num tom amarelo, de lâmpada incandescente, sem qualquer vulto ou silhueta aparente, qualquer sombra de gente absorta na noite, compartilhando sentimento insone comigo, no inconsciente da cidade adormecida.

A calma amordaça meu coração até baixar minha respiração, mas ainda me sinto solitário. Ríspido na poltrona, observo o ritmo do relógio, tenho meus livros em volta, música no rádio, mas nenhum objeto me é suficiente. As horas se arrastam como o passo das formigas nos cantos da sala, a lâmina do ventilador de teto corta o vento e parece a hélice que me move no sereno da aurora. Passeio pela casa e verifico o sono do meu irmão, no quarto da cozinha. Os demais dormem de porta trancada, imagino se dormem bem.

Contudo, a mágica só acontece através do filho do meu vizinho, um garotinho de cinco anos de idade, que desce as escadas saltitando, rompe a barreira do silêncio. Me vejo espelhado nos olhos dele, quando toco seus cabelos cacheados ainda melados de creme. Ele me sorri timidamente, com a mochila nas costas, a lancheira na mão. É hora de trabalhar e a cidade me espera, com todas as ruas ainda ermas. Na padaria, a garçonete esfrega os olhos da noite passada, que o marido lhe trouxe mais desgosto. Sem perceber, me entregou o café ainda amargo, passou largo pela minha garganta. Toquei-lhe a mão úmida, desejei bom dia. Ficou por isso mesmo.

E pela rua, todos os rostos inadvertidos ainda da véspera. Navegando pela multidão, percebi que é impossível desejar alegria às pessoas, um bom dia, boa sorte. Os rostos e as expressões surdas, corações pedrados da noite para o amanhecer. Em outras terras menores, mais floridas, não passaria por alguém sem deixar uma cortesia, uma passagem para um momento melhor da vida. Aqui é quase impossível. Deixo minha atenção com o motorista do ônibus e o cobrador, que franzem a sobrancelha à minha saudação. Ademais, sento-me encostado à janela, com os fones de ouvido, abro um livro e sigo minha viagem, pacífico.

As pessoas vão se encaixando na engrenagem do mundo cada vez mais tecnológico. E eu ainda me levanto do computador em direção ao café. O pessoal da gráfica, que têm mais idade que eu, conversa sobre o último capítulo da novela, a ligeireza do tempo, os planos para o ano novo, o chefe recém-nomeado, a máquina que não funciona. “Se você escolher o café fraco, vai sair café forte. Se Zé não descobrisse isso, eu tava tomando garapa até hoje”, disse uma mulher. Eu ri pra ela. Todos riram juntos. Quebramos a carapaça do cotidiano.

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