Consequências intelectuais de uma segunda-feira


Tem vezes que eu chego no Centro da cidade, o reticente frescor do banho, cabelo molhado, o cheiro de perfume lavanda na testa e no pescoço, os óculos escuros na cara, cabelos ao vento, me deparo com aquele calor, mas me sinto no melhor dos lugares. Paradoxalmente, os prédios e o asfalto me envolvem como lençóis no frio, eu caminho entre as pessoas, usufruindo do meu anonimato e isso me faz um bem enorme. A melhor terapia psicanalítica. 

Recife tem dessas coisas. Ainda ontem assisti Manhattan, de Woody Allen, e me peguei sentindo o mesmo que ele: um amor intraduzível por essa cidade. Se ela representa a decadência dos tempos modernos, se isso tem relação com o cheiro do mangue, os viadutos mal traçados, aqueles morros que delineiam avenidas tortas, com aquelas pessoas das quais conheço uma centena de rostos diariamente. E me passam na boa vista pessoas que eu já vi antes, mas não reconheço. Mas a cidade se inaugura pra mim a cada dia. No começo da semana é ainda mais nítida essa ternura pelo Recife, suas ruas e avenidas, sua modernidade tardia.

Assim mesmo eu entro numa banca de jornal e percorro as manchetes, até esbarrar num Le Monde Diplomatique falando do desmoronamento da esquerda na América do Sul diante das forças conservadoras emergentes. Essa esquerda – da justiça social – é como o meu Náutico velho de guerra – o pioneiro – que tanto amamos e que poucas alegrias nos têm dado, salvo àquelas que nos vangloriamos apesar de sua natureza estéril. A dona da banca, encostada numa pilha de revistas, no rastro do ventilador pra fugir do mormaço da Avenida Guararapes, me atende docemente, sem estender muito a conversa. Costumo ser a pessoa que compra as revistas que ninguém leva. A comerciante me olha num misto de esperança e condescendência.

No espasmo da alegria que Manhattan me causou, fui atrás do livro Que Loucura!, de Woody Allen, que eu já li há muito tempo, quando ainda fazia curso técnico de informática. Passando pela Praça do Sebo, um mendigo dormia no colo da estátua do poeta Mauro Mota, o outro cochilava no banco vazio, ambos aproveitavam a sesta debaixo da árvore. Eu os invejei, confesso. Mas a praça estava uma verdadeira loucura, as mães procurando os livros didáticos para o começo iminente das aulas. Fui em três livreiros e deixei pra lá, comprei pela internet mesmo.

Mas o que me fez escrever hoje e o que me levou a Woody Allen na Praça do Sebo foi esse compasso extasiado, que é o ritmo do meu pensamento na rua, em dias de alegria. As sinapses vão loucas, incontáveis e incontestáveis. Um dia desses perdura por semanas, revolvendo sentimentos nobres em mim até que o vício sedimenta tudo, feito o pó que resta depois do café, mesmo depois da parte fria do café. É quando enchemos uma xícara novamente e seguimos o novo ciclo.

Os dias de hoje são assim: "a vida continua surpreendentemente bela, mesmo quando nada nos sorri". Vejo as baronesas verdejantes espalhadas pelo Capibaribe e sei que há sofás e entulhos no fundo do rio. No fone de ouvido, tocava Luz do Sol, de Caetano Veloso. Os primeiros versos me faziam pensar naquelas baronesas boiando sobre a sujeira, mas igualmente reluzentes: Luz do sol/que a folha traga e traduz/em verde novo/em folha, em graça, em vida, em força, em luz…

O Recife tem essa beleza fugaz, que se renova a cada olhar pelos recantos e rostos. Quando entendemos sua história e as histórias particulares que se traçam diariamente, no sacolejar dos ônibus, no caminhar das pessoas, os bairros onde ainda se senta na porta de casa, os parques abarrotados no entardecer, as similitudes com outras metrópoles… A Jaqueira que lembra o Central Park, o Marco Zero com traços europeus, as periferias indianas, a Rua das Calçadas que se assemelha ao Saara carioca, o calor e o cheiro de peixe fresco pelo Cais de Santa Rita, tal qual Belém do Pará ou outra freguesia qualquer. Andando, comparamos automaticamente e essa familiaridade é mais um componente da ternura. Há sempre esse vislumbre.

E cada tarde dessas arrebata um pouco do meu coração nas paredes, janelas, no asfalto e nos olhos. Faço minha poesia individual, psicanalítica, me satisfazendo como quem toma um café. A emoção de estar nesse contexto derrete até sedimentar, o pique da renovação, do canto das estrofes e refrão, ora saudamos a melodia, ora enaltecemos a letra. Como diria Drummond, está lá tudo impregnado. “Noventa por cento de ferro nas calçadas/Oitenta por cento de ferro nas almas/E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.” Me dou muito com a ideia de vagar pela cidade e, conscientemente, me faço parte dela. Flanando eu descubro as partes do Recife que me constituem enquanto eu lírico.

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