Crime-pensamento
Frequentemente
eu me esforço para ser uma pessoa normal. Somente acho que algumas
pessoas são peixes fora d'água, mas, na verdade, todos podemos
transgredir a superfície. Por detrás da retina, apenas vislumbramos
a claridade para fora d'água, como possibilidade do salto, apenas
potencialmente. Mas a luminosidade está lá, tal qual o neon
inconcebível da madrugada, o neon do sex shop da Boa Vista, o neon
que ignoramos conscientemente no percurso pra casa, o neon reticente.
Acredito
que até os bandidos possam transgredir, se é que existe alguém 24
horas bandido. Ninguém consegue ser 24 horas nada, muito menos
normal. E é óbvio que existe a normalidade, a insuspeição, a
ortodoxia social, o perfil habitual, do qual entendemos impassível
de alteridade. Entendemos que um homem qualquer se vestiria com
camisa branca, calça jeans, sapatos esportivos, quiçá um relógio.
Cabelos penteados para o lado, algumas cicatrizes de espinhas no
rosto, unhas cortadas, perfume suave, sem suor no corpo. Você
percebe alguém assim ao seu lado na recepção do consultório
médico. Uma pasta sobre o colo, o volume do smartfone no bolso da
calça, olhar absorto na televisão, que exibe o programa de Ana
Maria Braga.
Situação
perfeitamente normal, mas a cabeça, se você acredita em
transcendência ou no materialismo, funciona no ritmo do caos,
considerando, inclusive, coisas que não podemos elencar na escrita
ou na linguagem não-verbal. Esse homem, de meia-idade, possivelmente
pai divorciado, que namora a estagiária, que tenta fugir do vício
do cigarro (se você reparar os dentes inferiores, verá sedimentos
do tabaco entre os incisivos), esse homem pode muito bem desviar o
carro para o outro lado do Recife, para a zona norte. Naquela casa,
situada em rua inóspita com nome de vereador falecido, ele compraria
objetos fálicos e libidinosos para alimentar seu desejo homossexual
ou, em outro bairro limítrofe, no segundo andar de um prédio
caixão, pagar pelo haxixe que ofereceram como a melhor das
indicações.
As
transgressões mais comuns costumam acontecer no intervalo do
trabalho, na folga ou no ócio improdutivo, quando a nossa percepção
esbarra no fundo do poço, quando entendemos que todo dia é
quinta-feira, que toda quinta-feira é do mês de dezembro, que todo
dezembro aconteceu em 1903 e que, na verdade, devemos é gozar da
nossa eternidade passageira, aquela fatia de tempo de que dispomos.
Mas o olhar está sempre maquinando, sempre trabalhando. Quando
passamos pela catraca da empresa, quando pegamos o troco do pão,
quando achamos um lugar vazio no estádio, quando o executivo tira a
sujeira dos dentes durante a apresentação de slide, quando olhamos
por cima da tela do computador na sala de casa e a família inteira
conversa à mesa, distraída.
Posso
dizer ainda mais: quando saímos do shopping e uma coluna de mormaço
cai sobre a nossa cabeça, quando vemos um cachorro urinar na rua,
quando o padre unge a testa de uma criança, quando passamos na
frente de um hospital e vemos passar mal um idoso na rua, quando
ouvimos uma música preferida e já não sentimos o mesmo prazer,
quando vestimos a roupa depois de uma consulta, quando observamos a
chuva pela janela do motel, quando espiamos os outros casais dançando
no salão de festa, quando cortamos o bolo enrubescidos pelas palmas.
O olhar permanece maquinando. Basta comparar o que você faz e o que gostaria de estar fazendo.
O
acaso é a isca da transgressão; o crime é aquele desconhecido que
nos olha no meio da multidão enquanto discursamos para os
funcionários. Por um momento, aquela pessoa guarda o nosso segredo,
por um instante somos cúmplices. E o delito ocorre em pensamento,
pleno, perfeito, regozijante. No segundo seguinte, a virada dos
ponteiros do relógio derruba o castelo de areia, voltamos àquele
manto de normalidade. Essa constatação está além dos paradigmas
éticos; está no íntimo de cada um, nos rodeios do nosso pensamento
molhado de volúpia, encharcado por amor e ódio, o veneno e a
vitamina. Somos plenamente capazes de perceber algo novo a cada vez
que passamos por um lugar conhecido. E aquela faceta se revela
provocante, talvez pelo motivo mais niilista de todos, mas nem por
isso inócuo.
Não
é possível nominar a nossa capacidade de trair a normalidade, mas é
fato, somos perfeitamente capazes de fazê-lo. Esta revelação
insinua que, em algumas dessas situações enumeradas, meu pensamento
esteve fazendo o jogo do inconsciente – aquele “sistema do
aparelho psíquico constituído por conteúdos recalcados, nos quais
se desenrolam processos dinâmicos que contribuem para determinar a
vida consciente”, como me explicou um amigo psicólogo. É o
diabinho da nossa consciência. E o valor que atribuímos – bom ou
ruim – à índole desse diabo fica por conta do leitor. Embora
altamente radioativo – e por isso transgressor – eu entendo que
esse instinto deva ser regulado, mas não nego que ele exista. Pelo
contrário, quando o mundo tiver data de vencimento, eu liberaria ele
neste momento. Até lá, sigo transgredindo na intimidade.
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