Magia indiferente da vida



Isadora ouviu o miado apenas uma vez, assim que abriu o portão. O ranger das dobradiças fez espertar a gata, que entregue à modorra da tarde, ofegava após dar à luz três gatinhos rosados, ainda de olhos fechados, um deles agarrado à placenta pelo cordão umbilical. A gata branca com manchas amareladas, magra, suja de poeira, olhou Isadora de soslaio, seu corpo enchia e secava como a maré, a pele da barriga estava flácida e arriada nos flancos, revelando o oco deixado pelo parto. Ela estava caída entre as plantas do jardim e a caixa d'água, enquanto os vizinhos haviam guardado seus filhotes distantes, numa caixa de papelão debaixo da janela do apartamento do térreo.

Durante alguns segundos vacilantes, Isadora percebeu que a gata mãe havia rejeitado seus filhos e essa visão se fez cortante, mas não houve pranto. A gata não tinha forças para lacrimar, Isadora estava chocada, mas bastante confusa. E os gatinhos davam pequenos miados, enquanto os mosquitos começavam a pousar na placenta marrom escuro, quase como um bife apodrecido.

Dez metros separavam a caixa dos filhos da mãe quase desfalecida. Semanas atrás, a pobre gata miava solitariamente, no seu cantinho debaixo das plantas do pátio, como uma gata de rua qualquer. Não dava sinais de que cairia em fraqueza, não indicava sequer que ocultava filhotes na barriga, sua gravidez silenciosa. Agora seu semblante adquiria tons de humanidade, de sofrimento loquaz, quase retórico.

Era possível fazer alguma coisa? Em algumas horas, a gata viria a falecer, pela lei natural da vida selvagem – a Lei de Murphy, obrigando a dor a trazer a morte – incutida no concreto urbano. Os filhos consumiriam os dois dedos de proteína que acumularam na barriga materna, mas não era suficiente para muitos dias. Talvez um dia fosse muito para aquele tantinho de vida recém-nascida. Fosse como fosse, os felinos vivem mais que um ser humano graças ao instinto e a própria formação da espécie. No furacão de conjecturas da cabeça de Isadora, essa hipótese lhe trazia uma ponta de consolo, mas não era bastante.

A rejeição aos filhos martelava no juízo de Isadora. “Como pode? Como pode, meu deus? Não faz isso, por favor. Não deixa eles sozinhos, não os abandone…” Desejar não adiantava, porque essa ponderação estava além das possibilidades da gata. Arquejando, ela permanecia viva, sabe-se lá o que restara na barriga esvaziada, quantos órgãos foram afetados pelo processo. Talvez um filhote morto, que o frio da noite abrasaria, tornaria implacável cada minuto doloroso.

Mas o sentimento entre a gata e sua prole estava inapreensível naquele instante. A gata sozinha, sem parente, sem marido, não preparou nada para os filhos, não pensou em nomes, não sonhou com os dias de sol em que os acompanharia na caça, a caminhada sobre o muro, as noites em que seria preciso protegê-los. Nada disso foi pensado, previsto ou planejado. A gata tinha apenas aquele pressentimento de que aquele enchimento na sua barriga não terminaria bem.

Na busca remota de solucionar aquele padecimento mútuo, Isadora deixou os pacotes escondidos, voltou na rua para comprar comida e algumas ervas para um chá. Compraria também uma seringa para dar leite aos pequenos. (Chegando em casa, ela veria apenas leite desnatado) “Não sei se serve, mas vai esse mesmo. Vai sem açúcar, porque é natural, como leite materno”, pensou a menina. Na esquina, esperando aliviar o fluxo de carros para atravessar a rua, Isadora olhava distante, pescando a imagem da gata e seus filhos no horizonte afastado.

Com um cigarro entre os dedos, a mão para fora do carro, um homem branco, gordo, nariz achatado, sobrancelhas grossas, calvície frontal, barba por fazer, notou Isadora perdida na calçada, parada bem na esquina. Buzinou para ela, esperando talvez um retorno sexual aleatório, aquele costume machista transversal ao campo e à metrópole, mas foi ignorado. A distração lhe custaria a frente do carro, que se chocou contra o ônibus parado para subir passageiros, chacoalhados e assustados. O acidente, supostamente banal, pararia aquela rua na periferia da cidade. E a câmera de deus levantaria voo, tal qual a magia indiferente da vida, focando em outros entornos, enquanto os miados prosseguiam ecoando.

Comentários

Postagens mais visitadas