As coisas que te falei na mesa de bar


Revolto-me a todo instante, um estrépito dentro de casa. Gritos, barulho de objetos se espatifando contra parede, correria, esperneio. Todas as portas estão trancadas. Silêncio na vizinhança, ninguém sabe o que acontece em Dogville. Lembrar de você me faz pensar sobre perdão, sobre condescendência, sobre amor. De fora pra dentro, como um arrastão, como uma chuva de vento, como a força infinita do mar. Sentimentos se instalam, mas só posso, após a intempérie, observar da janela, a rua incólume. Ouço um papagaio distante, a sirene da obra apita frequentemente. O caminhão do lixo recolhe a sujeira da rua, as baratas se movem. Eu ali, firme na carne, o espírito não tem controle. Mas se apequena diante das possibilidades do mundo. Eu sou muito magro pra pancadaria. Eu sou jovem pra encarar o trânsito, o livro de ponto, aquela responsabilidade de voltar vivo pra casa todos os dias, sem beber, sem fumar, sem ser assaltado, sem olhar pra mulher do outro, sem imaginar besteira – eu não sou suicida. O alarido em todos os cômodos, tudo revirado, o rastro da minha mão percorre a poeira que repousava esquecida sobre a mesa. De repente abro a porta pra jogar fora as garrafas de cerveja. Uma vizinha me cumprimenta, dá bom dia, seu filho desce logo em seguida, lancheira na mão, mochila nas costas. Toco rapidamente na sua cabeça, cabelo penteado para ir à escola. É segunda-feira. Minhas olheiras estão salientes, mas dizem pouco sobre os sonhos intranquilos. Meu coração aperta quando vejo a mãe e o filho trancarem o portão do prédio, seguirem para a batalha diária de encontrar as pessoas. A imaginação percorre todo o meu corpo, me proporcionando uma sensação estranha, cortante feito caco de espelho, até o cheiro de sangue eu sinto. Mas é preciso tomar banho, escovar os dentes, se arrumar, nosso ritual civilizado. Estou na rua caminhando ao lado de outros recifenses. Cada um está no seu posto, eu sigo para o meu, como se houvesse amanhã, como se o próximo ano fosse uma certeza. O corpo macerado não é capaz de abstrair, não concebe nenhuma magia, não romantiza, não idealiza, não revoluciona. O céu aberto e azul, sem estrelas, nítido como a lente perfeita, uns pássaros irrompem a visão, os barulhos todos me atordoam. Mas eu sigo contido, o fone de ouvido em volume saudável, olho pra baixo como se não tivesse nada a reconhecer. E essa angústia me percorre, porque eu sei que você me espera. Porque eu sei que existe um demônio se debatendo no interior de mim. Magro, pálido, ainda com fome, a boca seca, não há muito a dizer às oito horas da manhã. Me distraio enquanto nada exige minha atenção. É assim que coisas são, impróprias, distorcidas, falhas. Você está lá, no seu canto, mostrando pra mim o quanto a realidade é veemente. Você traz uma ternura para qual eu não me preparei. Você é doce feito as primeiras vezes. Eu não consigo. (Já faz dez minutos que deixo outras pessoas passarem na minha frente, a fila está grande, a corrida na montanha-russa é rápida, mas o interesse é contínuo. Todos querem experimentar o frio na barriga. Eu ainda não consigo me jogar. Sim, eu sei, é seguro. Mas não dá agora. Pode passar, moça) Aqui dentro existe um músculo chamado “coração”. Ele reage sensivelmente aos meus medos. Você não é um medo. Você é uma certeza, você é como um nó cego. Está em todos os lugares, meu coração não se aguenta. Eu te olho como alguém que assiste o espetáculo por detrás das cortinas, na coxia. Fascinado, quase tocando os personagens, quase me envolvendo na trama. Mas algum olhar pesca minha cabeça no canto do palco e eu me escondo, com medo. Você é, sim, a sétima maravilha do mundo. Eu sou só um coração despedaçado; que ainda bate.

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