Quando me senti um estrangeiro
O trânsito estava infernal
naquela noite, eu pude observar bem no canto da janela aquelas lanternas
vermelhas encadeadas na avenida larga, motoristas impacientes com os pés nos
freios dos carros, buzinas frenéticas, o semáforo que revezava as cores sem
contribuir muito para destravar o engarrafamento. O trânsito como a metáfora de
uma vida, eu contava até dez, tamborilava os dedos na mesa de vidro, deixava o
tempo correr. As luzes do escritório estavam quase todas apagadas, apenas Elisa
terminava de revisar um relatório.
Eu me peguei pensando no rapaz em
cima do gelo baiano que eu encontrei hoje cedo no caminho para o trabalho. Um
homem jovem, negro, aparência maltratada – talvez pelo excesso de trabalho, pelo
sol – ele vestia um macacão de operário, usava um protetor auricular dos
grandes, tinha um pequeno espelho de parede, desses com moldura vermelha, amarrado
no cinto. Na mão, uma Bíblia fechada, que ele segurava contra o peito. Não
dizia nada, observava com muita concentração as pessoas cruzando a faixa de pedestre, os carros absortos
no tráfego. Pra mim, era um rapaz sem nome, sem família, um coadjuvante de todas
as vidas que passavam por ali.
Me parecia um profeta. Alguém que
trazia um espelho para a autorreflexão que devemos fazer, a Bíblia como os
valores que devemos seguir. O protetor auricular me lembrava a justiça, que não
devia se contaminar com os fluidos da parcialidade. Mas é estranho: em tempo
de falsos profetas nos ônibus e na internet, das ilusões desfeitas pelo excesso
de realidade, ver alguém numa epifania – mesmo na loucura – é estranho. Poucos
parariam para observá-lo. Eu tive que me conter para não fazer perguntas.
O profeta trazia uma atitude que eu
necessitava naqueles dias incertos, porque ele abria mão de participar do mistério que
é a nossa vida cotidiana, o mercado de trabalho, as obrigações diárias, os
ritos, as cortesias, as ligações telefônicas protocolares, a etiqueta para reverenciar a gente fina da cidade e todo o seu mobiliário bacana. O profeta fazia seu próprio cotidiano, como um estrangeiro. Quem é aquele estrangeiro?
Como ele sabe com tanta certeza o tempo que precisa passar ali em cima do gelo
baiano, se exibindo para os pedestres e motoristas?
Elisa foi apagando as luzes, mas
logo voltou atrás, percebendo que eu ainda estava distraído na minha mesa, ora rabiscando uns papéis sobre a mesa, ora espiando através do vidro da janela. “Tu vai ficar por aí até amanhã, bonito”, provocou
Elisa. “Foi mal, eu tava distraído, com uma preguiça enorme de descer, voltar
pra casa”, respondi, quase balbuciando. “Deixa da tua preguiça, rapaz. Nem
escada é. Tu desce de elevador, no fresquinho do ar-condicionado. E se quiser,
eu te dou uma carona até a metade do caminho, pelo menos. Posso te deixar no
Ipsep e, de lá, tu segue”, sugeriu. Fiquei pensando uns cinco segundos, antes
de deixa-la impaciente. “Eu vou de ônibus mesmo, se preocupa não. Obrigado,
querida”, devolvi a gentileza. “Tá certo, boy”, se despediu, com um aceno.
A essa altura, o homem do
cruzamento já tinha desaparecido dos meus pensamentos. Juntei meus papéis,
arrumei minha bolsa – nesse dia, distraído como eu estava, esqueci de usar os óculos escuros, o relógio, até o celular eu havia deixado de lado. Tinha uns poemas rabiscados, embaixo
do notebook, achei melhor jogar no lixo antes que alguém lesse, rindo dos meus delírios. Ninguém me
esperava em casa, a cama estava cheia de roupas pra passar no ferro. Quando
desci, ouvi fogos de artifício num bairro afastado. Era aniversário da cidade,
mês de março, as pessoas praticamente se arrastavam ainda da ressaca do carnaval.
Eu tinha ido no bar no domingo à
noite, algo bem anormal para mim. Domingo à noite é pra descanso, pra pensar na
vida, pra deixar o tempo passar rápido feito veneno injetado na veia. Mas tomei
umas cervejas com Celina, conversando besteira, falando mais que o homem da
cobra, sobre coisas do coração, chorando pitangas, falando da minha vida
desarrumada, do meu abuso com as pessoas da cidade. Enfim, um "passatempo
humanizado", falando de assuntos mecânicos, mas de alguma forma me divertia. Acabei ficando bêbado, nós trepamos
até dormir e, hoje, acabei acordando sem despertador, quando o dia estava
estreando, bem frio. O gosto amargo na boca, o rosto amassado pelas cobertas
enroladas. Tudo me remetia a permanecer na cama, mas levantei. E, no caminho do
trabalho, encontrei aquele fulano. Fumei um cigarro antes de subir pra o escritório, rememorando o meu amor por Maria, como se tivesse prestes a morrer, como se cada segundo fosse meu último instante na vida. Era uma tentativa psicológica de ter adrenalina correndo no sangue, mas minha abstração não tinha essa capacidade toda.
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