Sequestro à meia-noite


Mário estava farto daquela gente no seu pé. Música alta, risos forçados, pessoas pegando pelo braço, cuspindo enquanto falam, contando histórias repetidas ou desinteressantes ou ambas as coisas. Ele deixou a taça sobre a mesa e se esgueirou entre os convidados, desviando de um que já estava bêbado, fitando o quadro na parede, e outra que acarinhava a criança no sofá; a mãe ainda o olhou de esguelha, percebendo quando ele se dirigiu ao quintal.

Fazia dias que Mário dava sinais de esgotamento e a festa de fim de ano foi o cúmulo, mas não houve reação enérgica. Ele apenas pegou o maço de cigarros que escondia no buraco da parede e foi o mais longe que pôde, no quintal. Provavelmente ninguém lhe seguiria até ali; estavam todos extasiados com todos os figurões e com a fartura da festa de confraternização, que Cibele preparou caprichosamente.

Na penumbra, Selma repousava no banco de concreto por detrás da mangueira, fumando um cigarro. Como garçons foram contratados, não era preciso a empregada trabalhar na festa, embora Cibele tivesse feito questão da presença dela entre os convidados. Nesse dia, Selma preferiu ficar no seu canto, folheando uma revista, fumando, ouvindo o rádio, pensando nos netos e amigos de outrora, se distraindo à toa.

Mário ainda se deteve no meio do caminho, mas considerou que Selma não atrapalharia a sua solidão. Seguiu e se sentou. Na verdade, a senhora que trabalhava há tantos anos na casa do jovem jornalista já conhecia quando, macambúzio, o rapaz não estava para conversa. Deu aquele sorriso amarelo, que logo desarmou as defesas dele. Afastado no banco de concreto, Mário fumou o primeiro cigarro vagarosamente, enquanto Selma cantarolava, olhado para a porta da cozinha, de onde se divisava a silhueta dos convidados, sempre de prato e copo à mão.

“Eu estou tão cansado, Selminha”, falou Mário, sem muita pretensão.

“Meu menino, eu, se fosse tu, aproveitava essa festa. Bebia muito, comia muito, paquerava alguém. A vida é difícil. Se você não se fode na ida, se fode na vinda. A verdade é que você se fode”, disparou a senhora, arrancando risos do rapaz, que, distraído, não esperava tal tirada.

“Eu não tô curtindo muito. Povo chato do caralho, só falam de dinheiro, de decorações, viagem pra Europa, essas futilidades. Eu não tô no mundo pra isso”, disse o rapaz, alardeando sua revolta.

Selma fez apenas um muxoxo e virou o rosto, amistosa. Ela também já conhecia esse temperamento queixoso, próprio da juventude e ainda mais Mário, um existencialista declarado. Mário, na verdade, havia acabado dois relacionamentos no intervalo de um ano, concluiu a faculdade, arrumou um emprego que lhe sugava mais de dois terços do dia e o que ele fazia era só jogar a bagunça para debaixo do tapete. Gastava dinheiro sem pensar muito, geralmente em bares, cafés e livros. Aproveitava qualquer um que lhe aparecesse para despejar as lamentações e teorias a respeito do mundo, mas os convidados da festa de fim de ano não faziam esse perfil. Eram amigos da família, colegas de trabalho da mãe e do pai, além de algumas pessoas que Cibele convidara por puro interesse, almejando uma promoção no escritório de advocacia ou que lhe sublinhassem o nome na coluna social.

Mário estava mais para a galera descolada da Rua Mamede Simões ou coisa parecida. Só que, Selma até já percebera, mesmo essa galera já não lhe satisfazia. O entusiasmo com que Mário lhe contara dessas pessoas inteligentes e contestadoras, quando ainda estava na faculdade, agora se convertia numa aversão silenciosa. Mário estava cobrando mais da vida, querendo algo que ninguém poderia lhe dar. Só ele mesmo acharia. Uma resposta, um passo à frente, seu lugar ao sol.

“Meu filho, espere um pouco aqui”, disse Selma.

Mário não escondeu a dúvida, mas aguardou. Tinha um apreço e uma admiração especial por Selma, pela forma abnegada como ela praticamente lhe educou. Selma, que nunca estudou muito, ensinara a Mário que a vida tinha de ser vivida sem muita filosofia. Ela entendia que hoje os jovens tomavam o lugar dos mais velhos por conta da tecnologia. Mas não se dava por vencida, porque viver era muito mais do que ter informações, ditar regras, viver era mais do que tocar fogo no mundo. Viver era manter os olhos abertos, manter-se de pé diante da ventania. Essa era a parte mais difícil, que Mário talvez não tivesse entendido de primeira.

A vida, com sua hipocrisia, seus lobos em pele de cordeiro, seduziria o rapaz de todas as formas. “Meu filho, Ulisses, o herói de Homero, foi tentado pelas sereias que queriam lhe levar para o inferno. A sua maior façanha, perceba, foi permanecer são e chegar em casa”, proferiu Selma certa vez, dando tapinhas no rosto de Mário, que não deu muito ouvidos à lição. “Esses meninos nunca ouvem o que a gente diz, não é, dona Cibele?”, comentou Selma, enquanto a dona da casa meneava a cabeça, pensando no futuro do filho.

Selma não quis ser notada pelos convidados. Assim que o corredor ficou sem ninguém, ela pulou para a cozinha e pegou, no fundo do freezer, uma cerveja long neck super gelada. Ela tinha comprado logo cedo, no depósito de bebidas do quarteirão vizinho, talvez pensando em tomar antes de dormir, como costumava fazer nos finais de semana. Era sua recompensa pessoal. Saiu da cozinha rapidamente, antes que alguém chegasse à procura de salgados, e voltou para o banquinho de concreto no fundo do quintal.

Nessa hora, tocava Roberto Carlos no som da festa, provavelmente naquele momento em que todos já desviaram a seleção de músicas feita por seu Leopoldo, marido de Cibele, que tinha um gosto musical apurado. Todos cantavam em coro: Como vai você? Eu preciso saber da sua vida. Peça a alguém pra me contar sobre o seu dia. Anoiteceu e eu preciso só saber. Com o copo de cerveja pela metade levantado, Cibele cantava abraçada à irmã, Sônia, enquanto seu Leopoldo bebia uísque e conversava sorridente com Guilherme Cavalcante, um renomado promotor.

O próprio Mário cantarolava a música para si mesmo, recostado no banco, levando as mãos cruzadas à nuca. Selma se aproximou devagar e arrancou a tampa da garrafa numa dentada.

“Tome. Não precisa beber rápido. Só tome”, ordenou Selma. Ela só demorou o suficiente para beijar o rapaz nos cabelos e dizer um “Boa noite” sem esperar a resposta. Mário olhou para ela sem entender muito o que ela quis dizer, mas também não questionou.

A festa só ficou mais animada à medida que adentrava a madrugada. A casa estava em local nobre da cidade, onde as festas não costumavam incomodar a vizinhança. Eram eventos sociais necessários para fazer a roda girar.

Sem ter sua ausência notada, Mário ficou bebericando a cerveja que Selma lhe trouxe e fumando um a um todos os cigarros do maço. Nesse instante, passaram pela sua cabeça todas as pessoas que importavam, todas as teorias que já maquinou, todos os livros que pensou em escrever. Por fim, pensou detidamente em Selma e como ela lhe tinha carinho. Quieto como estava, chorou um pouco e deitou-se no banco de concreto, já por volta das 4h da manhã. Os galos cantavam na redondeza, embora não se soubesse bem onde, anunciando que o sábado se aproximava. Mário adormeceu.

Cibele juntava os cacos na sala, mas se sentiu exausta e subiu para o quarto, onde Leopoldo já roncava havia alguns minutos. Por um segundo, pensou em Mário, mas pôs rapidamente na cabeça que o rapaz estaria no quarto, no décimo sono. Mário dormia no banco de concreto, como se tivesse tomado o maior porre da vida, o sono de pedra. Todos repousavam, finalmente. Era dia 31 de dezembro.

Sem entender muito o que acontecera no dia anterior, Mário despertou com a quentura do sol por volta das 10h. O tempo abafado logo se transformou numa chuva torrencial que obrigou ele a correr para dentro de casa, puto da vida. A cabeça lhe pesava duas toneladas de ressaca terrível, como se um caminhão tivesse passado por cima. Nos lapsos atenuantes da dor, Mário lembrou vagamente que conversou com Selma no quintal e pôs a mão na cabeça. Olhou-se no espelho, de relance, sentindo-se um pouco diferente. Na cozinha, tomou um analgésico, encheu a barriga de água gelada e depois subiu para o quarto. Não conseguiu dormir, ficou ali olhando para o teto, pensando qual o motivo de tamanha ressaca. De sorte, culpou a vida.

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