A crônica diária de um jornalista necessitado.
Gravador
à mão, blazer alinhado, relógio no pulso marcando a hora atrasada: 13h53min. Extremamente atrasado, parei de protelar e fui
pra rua. Eu precisava gravar aquela entrevista com a bendita professora Otília
Silva e Cunha. Mulher setentona, de alto renome no ramo da pedagogia clássica,
cabelos grisalhos, pele branca, sem que a vida lhe tenha gastado a superfície,
a não ser pelas rugas do rosto sempre feio. Dei a mão para o ônibus e tomei o
sentido da casa da senhora.
Sem
engarrafamentos, pude logo chegar à sua residência e não toquei muito a campainha, a
dona já me atendeu, com uma curiosa hospitalidade brasileira. “O que deseja,
seu moço?”, perguntou Otília, franzindo a testa. “Estou aqui pela entrevista
que marcamos por telefone. Sou Alfredo Souto, lembra? O jornalista apressado da
gazeta?”, tentei explicar. A professora hesitou dois segundos e me deu um
susto, com efusiva recordação. “Claro, como poderia esquecer! Voz aveludada e galante!”,
saiu rasgando elogios gritados. “Penso que devemos cuidar em conversar”, ao que
ela retrucou “Sempre com pressa, não é, queridinho?”, e fez com que eu entrasse
em sua casa.
Pus
os papéis sobre a mesa, a casa tinha a mobília bem postada, mas ela morava
só. Teve uma parenta que lhe acompanhou longos anos e sumiu-se e agora ela
vivia seus últimos dias na companhia de um gato negro. Que sorte. Eu não podia
me demorar, mas a casa estava aconchegante. Ela me ofereceu um café, que não
recusei e logo estávamos no aconchego de poltronas de couro, onde ela
rememorava seus tempos de mestra. “No
meu tempo, a vida corria pelos jornais, a beleza da vida social eram os cinemas
e recitais, além dos mexericos, que já vinham decaindo; os rumores da época eram sem sal algum, o
prazer era a pedagogia pra mim”, averiguou meus papéis, um por um, arregalando
os olhos, num misto de modéstia e zombaria. Era a minha pesquisa sobre a velha
professora, que havia marcado época entre alunos e professores, sendo figura
representativa e agora lhe tinha um artigo de jornal dedicado pelos seus 75
anos. Fora incumbido de conhecê-la e homenageá-la, eu precisava desse dinheiro
e tinha sensibilidade.
A
dona folheava minhas anotações e recortes de jornais antigos, e o seu interesse
se aguçava, quando se deparou com uma foto: Ela, abraçada a um aluno premiado,
na época, por méritos escolares, provavelmente do ginasial. Contemplou a
fotografia por um instante e depois se virou para mim. Eu preparava o gravador
para iniciar a entrevista e riscava, no papel de perguntas, os últimos retoques
das questões finais. Foi quando Otília, encarando-me, pôs o dedo em riste, “Esse
menino foi a minha verdade”, e soluçou ligeiramente, porém sem pranto. Olhou-me
novamente, com mais profundidade e descaro. Havia algo no olhar daquela velha
que me amedrontava, mas permaneci imóvel.
“Dona
Otília, vamos iniciar?”, disse, inseguro. Ela continuou calada, inerte, e
depois se levantou. Em silêncio, eu fiquei. Ela pôs-se a andar de um lado para o
outro, parecia necessitada em tomar decisão. Aflita, ela tocou os seios
flácidos, meu Deus, o gravador caiu das minhas mãos. Passeei a mão pela boca
suada, enquanto ela refletia, ostensiva, com as mãos grudadas nos seios. Foi
quando demonstrou que estava a se masturbar. A ponta dos dedos moldava o bico
dos peitos. Os olhos cerrados sobre olheiras, a boca entreaberta, a senhora bailava em movimentos estranhos. Eu me levantei, e gesticulando timidamente, disse, “Dona
Otília, preparei muitas perguntas, mas se a senhora achar melhor, posso vir
outro dia e marcar outro lugar, sei lá...”, e a dona não atentou para mim, que estava,
àquela altura, muito embaraçado.
De
súbito, a comadre sentou-se no chão. Levantou o vestido e deitou-se em delírios,
esfregando a mão na vagina que estava a tempos guardada na calçola, repetindo
um nome que, de início não pude entender, mas que logo ficou claro: “Hugo, meu
veneno, Hugo, minha fascinação...” e sem mais nem que, a dona debatia-se, e eu
não conseguia tomar atitude. Por um momento, olhei suas paredes repletas de
reconhecimentos, diplomas, fotografias com reitores, amigos, seus sobrinhos, a
dona era uma boa solteirona. Quando voltei meus olhares para ela novamente, já
gritava insanidades do tipo “Hugo, me coma, eu não sei mais viver sem esse seu
pau juvenil”.
Eu,
Alfredo Souto, jornalista fatigado pela cruel vida financeira do mundo jornalístico,
olhos fundos de tanto trabalho jogado fora, de tanto jornal para limpar bunda e
embrulhar peixe, tinha uma reconhecida professora em minha frente, digna de
elogios exagerados, premiações e homenagens, e que agora se debatia de desejos
mal resolvidos. Eu, que tantas vezes me embriaguei nos botecos, em busca de
consolo pelos desenganos, vejo uma senhora tão nobre berrando suas fantasias
com um ex-aluno superdotado. Eu que rolei com tantas marias, procurando sabe-se
lá o que, que rola na boca dos homens, não consegui gravar uma sequer em meu
peito. E agora, o remorso me consome frente a essa loucura de velha tão versada
e honesta.
Sabe-se
lá dessas vidas mascaradas, criadas em cativeiro feras devastas disfarçadas de
cães com pedigree. Dona Otília já não se mexia, dedos roxos, morte certa, em
seu último estertor, “Hugo, meu obelisco”. Ganhou a capa do jornal, com a minha
triste primazia em cobrir seus últimos desvarios. Dona esta que merecia
homenagem, agora se une a milhares que perecem nessa capa sórdida, onde os
homens pintam vidas genéricas e sanguinolentas. Logo aquela que fez de tantos
moleques doutores da raça, tinha seu nome desintegrado pelo despudor do meu
trabalho.
E
eu segui vivo, sentindo na carne a dor dela e de milhares de outros
personagens, que carrego em silêncio suas biografias brilhantes, sem nenhum
direito a retratá-las, pois que mortes certas, que viram estatísticas, põem um
dinheiro covarde no meu bolso. Dona Otília repousa sua história abafada pela morte trágica e noticiada. Seu desejo fora ao fundo do caixão e à sua memória, um sempre Hugo visceral...
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