Porta entreaberta



Samuel passou a toalha no rosto, pestanejou, franziu a sobrancelha, suspirou e olhou em volta. O banheiro completamente metálico exibia suas várias facetas. Ele jogou a toalha no suporte, que logo ajustou o pano e soltou um jato de vapor, deixando-o seco.

Uma gota de suor caiu no chão. Sem perceber o líquido, Samuel pisou-o, escorregando e acertando o meio da canela no balcão do banheiro. Ele logo lançou mão do aerossol, mas não gemeu. Olho seco.

Não disse qualquer palavra. Ao sair, Samuel bateu a porta do banheiro maquinalmente. A porta colidiu com o trinco e ficou entreaberta. Uma corrente de ar deixou a porta arreganhada.

No quarto, depois de se vestir, Samuel se observou no espelho e checou o metabolismo no aparelho. Samuel saiu. Jogou a porta do quarto no trinco, mas a porta ficou semiaberta.

Na banca, os monitores exibiam os últimos índices do mercado e da vida social. Índices.
Samuel tomou o táxi e digitou o endereço. O carro seguiu.

Nosso ser humano vestiu a boina de sensores e fechou os olhos. Ficou em silêncio por algumas horas, mas o ar-condicionado tocou a canela escoriada de Samuel em um determinado momento.

Ele surtou, tendo um espasmo e acertando a interface do carro. A porta se abriu e uma leve descarga elétrica o expulsou do veículo. Samuel levantou atônito, encurvado.

Complexado, ele bateu a porta do carro, mesmo sem precisar fazê-lo. A porta, entretanto, apesar do mecanismo, não fechou. Permaneceu entreaberta até não sei onde e quando.

Um vento estranho rondava a megalópole naquela tarde soturna. Samuel retirou a boina elétrica, abriu a maleta, mas não encontrou nada.

Do bolso da camisa, ele tirou um colírio, jogou nos olhos e depois tomou um comprimido. Samuel estava Sozinho. Não sabia em que bairro estava, talvez estivesse na zona periférica noroeste.

Rodopiou no próprio eixo. Com um estímulo súbito, Samuel sentiu todos os pontos do seu corpo doer. E foi só por um instante. A canela latejou mais forte. Logo, o efeito do comprimido passou. Uma secreção saiu pelo terminal, no pulso.

Naquele rápido surto de dor alucinante, Samuel se deu conta de que estava perdido, aquém dos limites do mapa virtual. Ele pestanejou quatro vezes, lentamente. Por cima dos prédios, os espectros das redes sociais luziam solitários. As ruas ermas. Samuel havia descido de um carro.

Passos sonoros dos sapatos sociais. Havia um beco entre as ruas. No fim do beco, uma última porta semicerrada. No chão, um cigarro fumado até a metade, a coluna de fumo subia silenciosamente da ponta de fogo.

Caído, desconectado, junto à porta, um corpo. Um suicida de morte clandestinamente dolorosa. Samuel se aproximou do corpo. No bolso do defunto, um bilhete: Fui meu único amigo.

Havia, ainda, no beco acinzentado uma lata de lixo. Samuel olhou por cima. Páginas abertas. Um vento tímido folheava os livros. Quatro títulos de muitas cores.

Samuel se despiu das roupas e equipamentos. Não tinha muito tempo. Estourou uma espinha no ombro. Fechou a porta próxima, os livros e os olhos do morto. Samuel chorou suas lágrimas.

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