Movimento rápido dos olhos
Essa
madrugada, na minha vida, parece que encerra dois dias juntos, em vez
de apenas um. E eu não me importo detidamente com detalhes, com
explicações necessariamente lógicas, com o que pensam. Eu queria,
sim, uma carteira de cigarros para detoná-la sozinho, uma varanda de
frente para o mar, uma cerveja gelada, fones de ouvido com rock n
roll. É o cenário perfeito pra dar descanso a essa mente
voluptuosa, que não pára um segundo. No canto da varanda, um saco
de lixo, cheio de corações de papel, que vou queimar na areia da
praia, depois que minha boca secar de tanto cigarro e da secura que a
maresia me dá.
De
repente, como num passe de mágica da ficção, encontro um revólver
carregado dentro da minha mochila. Que tal dar uns tiros? Por mim,
ótimo. Disparo no horizonte, os projéteis morrendo no fundo do mar,
entre as algas e bolsas plásticas. Tudo bem que Boa Viagem não tem
essa varanda que eu sonho. E, de fato, é um sonho. Não sei de que
praia se trata. Já é noite, meu dia passou como alguém que cai
numa piscina funda, que rodopia na água, sem saber nadar. Tudo fora
de controle, os olhos perdidos no meio das bolhas. O mundo é toda
essa sorte de coisas cadenciadas no tempo. Seja o tempo de viver ou
de morrer. O sonho mistura todas elas.
É
madrugada. As pernas das mulheres passam na linha de visão o tempo
todo. “As pernas das mulheres são compassos que circulam pelo
globo terrestre em todos os sentidos, dando a ele seu equilíbrio e
sua harmonia”, diria Bertrand Morane, no meu predileto “O Homem
que Amava as Mulheres”, de 1977, dirigido pelo querido François
Truffaut. À parte a citação com o pedantismo jornalístico, trago
aqui o valor que as mulheres têm na minha vida. Como parte da minha
consciência, elas são quase fantasmas do meu mundo de uma pessoa
só. E essa definição é como um fotômetro, que define a pureza da
luz que são esses corpos astrais, extremos, felinos, diáfanos e
intensos.
Não
há um só momento que eu não as perceba. Não há um só instante
onde suas curvas não me chamem atenção, onde seus olhos não
gritem para os meus. Mesmo de luto, mesmo entristecido, mesmo a
trabalho, mesmo insone. Agora são duas horas da manhã e uma moça
cruza, sem parar, a minha mira. Desconhecida, transeunte. Impecável,
apaixonada, com olhar entregue. Já que sonho, não custa tê-la ao
meu lado. Já que não é mais dia, já que não tenho mais
obrigações.
A
desconhecida andava pelo shopping acompanhada dos avós. Jovem, como
uma raposa, apesar de não saber muito sobre a vida, tinha um olhar
independente, como se ele já soubesse tudo sobre a vida e guiasse a
menina donzela. Não sei quem a vestiu assim. Um vestido levíssimo,
preto, caindo sobre seu corpo magro e bem feito. Cabelos lisos, com
cachos nas pontas. A boca carnuda reforçava o álibi de alguém
sempre pronto para se pôr em maus lençóis. Por debaixo do vestido
suave, seios pontudos, juvenis, provavelmente rosados, sempre
intactos, à espera. Por várias vezes, passei a seu lado, imaginando
mil coisas. Ela retribuía o olhar, prometendo coisas que não
cumpriria e pondo meu coração aos estilhaços.
Nessa
hora, dou um trago no cigarro com mais força. Sinto a fumaça
penetrar cada uma das camadas do meu corpo. E ele não é mais do que
uma continuação de mim, do que eu quero ser. Aquela fumaça pelo
ar, alcançando lugares que eu não posso chegar. A fumaça que chega
no impossível. É disso que eu me alimento, quando chegam as
madrugadas insolúveis, as escuridões indômitas, pautadas por
sentimentos não resolvidos dos dias em voga. Loiras que te deixam
com olhares de promessas, com desejos de entrega, de tara retraída,
de segredos voluptuosos, corações sangrando mais que o normal.
Vertigem.
Onde estou? O escuro vai se desfazendo até que me pego de joelhos na
ponta da cama, aos pés da loira nua. O vestido metodicamente dobrado
ao lado das sandálias rasteiras, o relógio, as joias. Leila estava
de olhos fechados, bem fechados, na verdade. Ansiava, suava um pouco,
frio. Eu não sei o que dizer. Toco nas suas pernas, num momento de
desequilíbrio. Ela abre os olhos e percebe que eu estou realmente
ali. Uma caixinha de som tocava Smoke On The Water. Era um motel?
Quem pediu a música? Como chegamos ali? Estávamos ali, afinal.
Não
era ar-condicionado, mas um ventilador forte. Botei numa velocidade
branda, sentei ao lado da moça e beijei sua orelha, enquanto alisava
seu corpo uma mão, me apoiando com a outra. Leila tinha 16 anos. Não
faço idéia do destino dos avós. Minha boca ainda seca, procurei um
copo d’água, havia uma garrafa pela metade na mesa cabeceira. Não
dissemos palavra. Ergui meus braços, percebi que estava tenso. Dias
de trabalho a fio, mas isso não mudaria nunca.
De
repente, estou com os seios pequenos de Leila na minha boca.
Salivando como um cão faminto, vou lambendo o mais que posso. Seguro
seu corpo na altura das costelas, ela era magra, segurei com firmeza.
Me deitei e ela ficou por cima de mim. Lambi seus seios sem parar, de
olhos fechados, sem perceber nada ao redor, suas mãos remexiam meus
cabelos longos e sujos. Senti sua mão tocar meu pênis, senti meu
pênis tocar os grandes lábios e penetrar vagarosamente, rompendo
cada barreira, a vagina apertada, molhada por dentro e por fora.
Caralho!
Por
um artifício da ficção, minha alma foi parar fora do corpo. De
cueca, encolhido na cama de casal, boca aberta. Meus olhos fechados
viviam o que a ciência chama de movimento rápido dos olhos. Como
uma metralhadora giratória, meus olhos perseguiam o corpo da loira,
os olhos vivos dela, miravam seu corpo esguio e desejoso, observavam
o teto do quarto de motel, depois do gozo, da lividez. Na cueca, uma
mancha escura se espalhava, com o gozo real durante o sonho.
A
janela do quarto aberta trazia a brisa perfumada das 5h da manhã. Eu
tinha inventado de plantar flores no parapeito da janela, por isso a
aurora vinha com mais beleza e frescor. Mas eu dormia. Via tudo isso
enquanto dormia, com uma projeção de mim mesmo para fora do corpo.
Vivia aqueles últimos instantes fora de mim, enquanto o eu vivo,
próprio, com emoções e metabolismos, repousava desconchavado na
cama. O quarto em desordem, pilhas de papel de trabalho atrasado,
contas a pagar, sapatos misturados com meias velhas e roupa suja,
exalando um fedor reprovável.
Na
rua, as pessoas caminhavam lentamente para seus trabalhos e estudos.
Eu ainda dormiria algumas horas, depois do celular alarmar mil vezes,
depois do meu horário passar. Muito fora das minhas
responsabilidades, eu tinha um sono que fechava dois longos dias,
sonhando com mulheres que navegam pelos meus mares sem sentir
qualquer profundidade. Como gigantes. Não havia revólver, nem
varanda para o mar e nem carteira de cigarros. A boca seca era mais
pela água que eu não tomei durante o dia. Logo, logo, os rins
começam a incomodar. Eu me levanto. Não lembro de absolutamente
nada. O olhar treinado procura a loira na multidão. Deu o branco.
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