Porque seu sentimento me pertence


















- Estou à procura de uma pessoa que diga duas palavras, disse Arísio.
- Amor. Perder.
- Por que disseste estas palavras, perguntou Arísio.
- Sem mais. Olhe nos meus olhos, olhe sem se importar com a vermelhidão. Esqueça os vasos sanguíneos. Por trás dos olhos brancos pulsa amor.
- Como assim?
- É a única coisa em mim que não exige inteligência. Nasce de dentro para fora, destoa. É uma fonte inesgotável.
- E perder?
- É só uma das maneiras de amar. Perder.
- O que é perder para você?
- Tomar o limbo do anjo. De repente aquele céu escuro se fez outra coisa. Estamos emparedados no outro. O tempo todo.
- Tudo bem, resignou-se Arísio.

Maristela era uma pessoa enigmática, não há como negar. Não que ela tivesse um olhar hermético, indecifrável. Pelo contrário.

- Tenho mil maneiras de correr pelo jardim. Quero a mais improvável, quero novas, talvez todas.

Arísio era estudante de direito. Sempre com um livro pesado debaixo do braço, óculos redondos, camisa polo. Tinha um passo comedido, daqueles que imergem na multidão, uma pessoa discreta.

Sem querer, eles se conheceram. Melhor, Arísio o quis. O jardim era a praça e foi onde eles se conheceram.

Maristela, um andar performático, pisava de forma anatômica, espalmando os pés no chão. Às vezes, ela saltitava, em outras, seguia correndo. Mechas loiras, globos oculares inquietos, metralhando tudo ao redor. Um nariz afilado, morena. Apenas um caderno de poucas folhas debaixo do braço, uma caneta presa ao espiral.

- Que horas, por favor, questionou Maristela, quando passou por um rapaz.
- São, é... 15h30. Quer dizer, três e meia.
- Obrigada, moço, disse Maristela a Arísio e seguiu absorta em seu andar solitário.

Arísio estancou por uns 10 segundos. O coração palpitou forte, fazendo o rapaz olhar em direção a Maristela. Já era tarde. Tinha outros dias pela frente, saltou a lâmpada por cima da cabeça!

A disciplina de direito penal estava marcada para as 15h30. Naquele dia, Arísio saíra atrasado. Mas na quinta-feira, ele passou novamente pela praça. Não encontrou Maristela de pronto, porém depois de meia hora, a moça apareceu, ignota.

Arísio ensaiou mil palavras em dois segundos, mas só conseguiu dizer as horas, sem que a moça perguntasse. Ela apenas o olhou e, com um movimento de cabeça, agradeceu o favor.

Por uma semana, Arísio chegou atrasado à faculdade. Na praça, ele erguia a mão. Não se sabe se a intenção era acenar ou mostrar o relógio. A informação do dia era a mesma. Três e quarenta e nove. Uma boca pronunciando por si só, palavras ditas como se soprasse um saxofone, à força.

A reação de Maristela mudava. Não se cogita a explicação. Em alguns dias, ela não olhava. Em outros, ela agradecia timidamente. Já teve data em que ela disse: obrigada. Já levantou mão, rodopiou, assoviou, mas permanecia longe.

Arísio era um rádio-relógio com especialidade em direito penal. Pelo menos até ontem.

Ontem, se vocês querem saber, Arísio repetiu o movimento uniforme. Perfume, relógio, cabelo penteado para o lado, pelos do antebraço intactos, barba feita, ponta dos dedos rosada. Tinha uma pedra no meio do caminho.

Esguia, Maristela vinha passeando a mão por cima das flores, psicodelicamente. Parava por um instante, longe das plantas. Depois cheirava o concreto e cheirava as flores. E cheirava os frutos e a carne dela mesma, em pele.

A pedra no meio do caminho acertou o bico do sapato de Arísio, que esbarrou em Maristela. O rapaz atônito, em total descompostura. A moça, senhora de si, fincada no próprio corpo, segurava firmemente os braços de Arísio.

Eles se entreolharam, Arísio estranhou a força com que ela segurou os braços dele.

- Estou à procura de uma pessoa que diga duas palavras...

Entre parênteses, a resposta que Arísio esperava era:

- Saia daqui.

Mas o que se sucedeu foi o primeiro diálogo desse texto. Depois de se resignar, em duas palavras tolas, Tudo bem, Arísio teve os braços libertados pela alma de Maristela, que foi embora.

Arísio não encontrou ponte e nem cicuta naquela hora. Não quis olhar para trás. Não moveu um músculo. Nem os olhos, nem o pensamento. Estagnou ali. Ficou pela praça, empoeirando-se.

De Maristela, não se sabe além das poucas respostas.

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