Conto de fadas sobre o mijo
Era
uma vez um homem. Era uma vez o silêncio. Era uma vez o escuro e os gatos sobre
o muro em volta do prédio pequeno. Um ventilador ligado na velocidade mais
baixa, a cama desforrada. A bagunça completa, jornais espalhados pelo chão,
junto a pilhas de livros insignificantes, farelos de biscoito, uma cômoda com
gavetas que rangiam. Sobre a cômoda, papéis, remédios, canetas, cadernos,
embalagens de camisinhas, plurais objetos estéreis. Era uma vez, depois de tudo
isso, o sono a cerrar os olhos do homem.
Era
uma vez um sonho, entrecortado dos clarões da realidade. Toda vez que um carro
ou um caminhão passava em alta velocidade, o motor fudido, o homem abria os
olhos, se revirava na cama e voltava a dormir, tentando retomar o sonho
medíocre de comer a vizinha.
De
frente para o quarto, porta com porta, estava lá o banheiro. Era uma vez, nesse
banheiro, uma goteira infinda do chuveiro. O piso do banheiro, desgastado,
cheio de buracos, juntava água e o barulho era um silvo na quitinete no bairro
da Várzea. Pingo, pingo, pingo, o sono era embalado por essa sinfonia do defeito,
da disfunção. Nessa noite qualquer, pequenos surtos na energia faziam com que o
ventilador parasse de funcionar por alguns instantes. O calor se somava à
quantidade enorme de mosquitos.
De
repente, a bexiga cheia de cerveja interrompeu o sono do homem, que acordou mas
sentiu preguiça de levantar. Sozinho em casa, era uma vez a preguiça e o
torpor. Virou para outro lado, afagou o pé da barriga e deitou de bruços,
esquecendo a vontade louca.
Da
bacia sanitária, que se avizinhava ao quarto (lembrem-se, porta com porta), um
odor violento emergia. Muito mijo acumulado, misturado com a água da descarga.
Do lado do vaso, apenas uma garrafa de água sanitária barata, que não surtia
efeito. No canto da privada, uma pastilha solitária lutava contra o mau cheiro.
O silêncio dos odores brigava com o sono barulhento do homem, que roncava após
o porre diário.
Eis
que a juntos, o mijo fedorento, o ronco insólito, a bexiga cheia de cerveja e
uma carreta ruidosa empurraram o homem para fora da cama. Trôpego, foi
driblando os livros, arrastando jornais, com as mãos a dar ripadas no ar, por
conta da escuridão.
Resmungando
palavrões, chegou ao banheiro. Baixou o calção e mijou, apontando o jato primeiro para fora da bacia e, depois, para o alvo correto. À essa altura, o
banheiro já fedia junto com o vaso, o mesmo cheiro compartilhado. Durou quase
dois minutos o tempo que a urina escorria, enquanto o homem olhava para o teto,
sonolento, bocejando ainda. Eram quatro horas da manhã, a melhor parte do sono.
Balançou o pau até acertar dois pingos na mão. “Puta que pariu”, falou
arrastadamente, pela força do hábito. Subiu o calção, ajeitou o pau para o lado
e passou uma água rápida na mão.
De
volta ao quarto, se esgueirou entre a cama e uma pilha mais alta de livros e
depois se jogou nos travesseiros. A cabeça começou a girar. Os carros passavam
na frente de casa, uma vez ou outra, uma moto, uma buzina para algum cachorro
desatento. Deitado de bruços, o homem virava o rosto para um lado, para o
outro, não conseguia engatar o sono. Pensou no sonho com a vizinha, se deteve
na vizinha, nos peitos. Embaixo do travesseiro, o relógio de pulso. Ficou
curioso, olhou a hora. Quatro e quinze. A barriga deu um ronco. O homem sentiu
o gosto ruim do bafo matinal na boca. Pensou em beber água, mas desistiu.
Ficou
de barriga pra cima, olhando para o teto do quarto. A luz do poste na rua
iluminava a ponta superior da cortina. O homem ficou observando. Por minutos a
fio. Eis que outra luz foi caindo. Era uma luz suave, do sol das cinco horas,
que vai dando forma aos objetos dentro do quarto. O homem perdeu o sono de vez.
Mas se resignou, ficou deitado por mais alguns minutos.
Nesse
meio tempo, uma corrente de ar aproveitou a janela da cozinha aberta e invadiu
o apartamento, revirando toda a poeira do chão, que era muita. No banheiro, o
ralo mandava para o esgoto um resto de água podre, como um refluxo. Os gatos da
vizinhanças começavam a se esconder da claridade, desciam dos muros e corriam
para debaixo dos carros, para dormir um primeiro cochilo. Era domingo, mas o
homem tinha que trabalhar. Ele se abateu e o domingo passou lentamente, sem que
o sono voltasse. Se arrasou pelo chão do quarto, sem que a vizinha lhe escutasse os passos. Na cama, repousou o homem.
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