Rua das Estrelas.

Vivi numa rua onde a vizinhança estranhava com facilidade. Disse "facilidade", não frequência. Pessoas íntegras no seu cotidiano, preocupadas em viver, absolutamente, suas vidas. Não importa se eu chegava cedo, a pé ou num porsche, com travestis despidos. Viviam reclusos em seus barulhos costumeiros e indeterminados. Gente que se mudou e gente nova, o paradigma era o mesmo, não fale com seu vizinho estranho. E não interessa que ele tivesse um sorrisão estampado na cara ou o rosto ensimesmado de lágrimas apáticas, nossa vida só constava em nosso sistema, dentro de nossas paredes, no resoluto latejar de nossos corações solitários. Não havia reacionários no quarteirão, os ouvintes de rádio e resenha, os que reclamavam incessantemente, as mulheres trocando receitas de bolo e cenas de novela, as crianças que jogam bola ou empinam pipas em grupo animado, não os há em qualquer recanto de rua que percebo em minha janela tristonha, logo me recolho também. Não incomodava, aparentemente, o eterno silêncio, onde dias eram apenas dias, não dizia respeito a ninguém a passagem do tempo, as pessoas viviam perenes. Não havia o desespero pelo outro, havia mesmo indiferença pelo outro, um descanso ou trabalho próprio que desprezava o outro. O pêndulo do relógio, o som dos carros na rua, que se morriam sutis. Era uma vacância sentimental que não era questionada, muito menos preenchida. Não, era apenas não. Mudar? Não. É isso aí, viva sua vida, seja como for.
Isso, no fundo, me incomodava. Eu morava só, numa casa modesta, pintura desgastada, um jardim morto, tanto fazia. O absurdo se instalara ali sem dia de ir. Eu já não ria há algum tempo, as distrações eram na janela, observando aquelas pessoas maquinais, que preenchiam e deixavam aberto um profundo vazio. Havia um lugar naquela rua muito apropriado, dentro do óbvio critério. Veja só, vida regida por critérios frios! O café Fábula era o único estabelecimento naquelas bandas. Nele, havia um rádio velho que era sintonizado numa estação de prováveis velhos sucessos. A filosofia do lugar não nos permitia surpresas. E me estranha dizer esse ‘nos’, pois lembro com muita falha de me sentir conjunto. Sozinhos, os vizinhos tinham olhares distantes, caminhavam absortos, talvez na hégira que crivou à Rua das Estrelas alma tão impura e sozinha, seus moradores, animais e objetos inanimados, meios-fios alvos e desocupados. Podia ser um pergaminho imaginário, os fantasmas e lendas que rondavam o casario, tantos mitos e parecia que só eu conspirava a retomada da vida festiva das Estrelas, resgatar a fé da dependência emocional, eu particularmente queria. O café Fábula tinha tipos estranhos, um senhor que sempre sentara da mesma maneira, alimentando cacoetes, gentes que se entreolhavam, trocando confidências sérias, coisas importantíssimas, segredos de Estado, palavras escassas e naturais. Uma naturalidade seca que me atingia e eu fui embora sem deixar recado ou falta, com espírito de iceberg.   

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